João Gomes-Pedro criou em conjunto com Berry Brazelton a Fundação Brazelton/Gomes-Pedro para as Ciências do Bebé e da Família, a funcionar em Portugal desde 2010. O pediatra que recentemente se reformou, trouxe até ao nosso país o modelo Touchpoints, que mudou a forma de se exercer pediatria no mundo inteiro. Republicamos esta entrevista, feita em novembro de 2017, no dia da morte de Berry Brazelton, de quem Gomes-Pedro era amigo. “É uma perda tremenda”, disse.
Aos 78 anos, diz que vai deixar de dar consultas, mas é difícil imaginar que assim seja, tal é a forma apaixonada com que fala sobre o modelo de touchpoints que promove, defende e ensina. Um modelo em que os pediatras não se limitam a ver se está tudo bem com a saúde da criança, mas a conversar com os pais, a ouvir-lhes as inquietações, a dar-lhes confiança e principalmente a explicar-lhes que quando se cresce, as coisas desorganizam-se para que se aprenda um pouco mais. Por isso, quando o bebé quer andar, vai desleixar o sono e dormirá pior. Mas aprendeu a andar. Quando o bebé começa a falar, se calhar vai deixar de comer como comia. Mas aprendeu a falar. Como explica Gomes-Pedro, o desenvolvimento não é feito numa linha, mas em degraus. E a cada degrau há uma desorganização, que permite que ele seja ultrapassado.
E como este pediatra acredita que cada bebé é único, rejeita receitas, quer para as cólicas, quer para o sono. Diz que as que há, normalmente são más. Gostava que todas as famílias tivessem acesso a uma consulta pré-natal, onde o casal, antes de o bebé nascer, pode começar a descobrir quem vem aí, ou a perceber que já sabe muita coisa sobre a personalidade daquele bebé que ainda está na barriga. E a levar para casa avisos tão importantes como este: não deixe que o seu bebé saia de ao pé de si no hospital por um segundo que seja.
Através da Fundação Brazelton/Gomes-Pedro, já formou muitas dezenas de profissionais no modelo dos touchpoints, mas diz que o sonho ainda está longe de ser concretizado em Portugal. Este ano, na comemoração do 15º aniversário do modelo touchpoints em Portugal, a Fundação faz a habitual conferência anual — que se realiza a 9 e 10 de novembro em Lisboa — dedicada ao Bem Estar da Família e da Criança. Ao mesmo tempo, o pediatra lançou um novo livro intitulado “Pensar a Criança, Sentir o Bebé”. O Observador entrevistou-o na sede da Fundação em Lisboa.
O que é isto de pensar o bebé?
Pensar a criança, pensar o bebé, é um misto de cognição, um misto de sensibilização, de desenvolvimento emocional, desenvolvimento afetivo, desenvolvimento dos vínculos organizados sucessivamente ao longo da vida do bebé. É esta transformação de um modelo que foi um modelo patológico, num modelo biológico.
Falo do valor da paixão, da criação da paixão, do estímulo da paixão fazendo vingar um vínculo que hoje está a ser prejudicado e enfraquecido, porque as grávidas estão dois dias, três no máximo no hospital, diria que dois na maioria, e quando é o primeiro filho, se não houver uma intervenção favorável à descoberta desse bebé, torna-se praticamente impossível reforçar aquilo que hoje é uma necessidade fundamental, porque a sociedade contemporânea está a apagar a força dos vínculos do pai, da mãe, do bebé, da família.
Mas não era sequer preciso estar no hospital para ter esse apoio. Ele podia existir em casa, ou não?
Mas nós não temos o apoio que há, por exemplo, em Inglaterra com as midwives [enfermeiras parteiras que acompanham as grávidas no hospital e em casa]. Não temos visitas domiciliárias. No primeiro filho, o bebé nasce por exemplo em Santa Maria e com sorte vai lá o interno vê-lo….
Ainda assim, a abordagem desse interno, ou do pediatra, nesse tempo que tem com o recém-nascido, pode ser diferente, não é? O método que defende não é o convencional, digamos assim.
Uma vez estava com um grupo de alunos de pós-graduação a fazer a avaliação neurocomportamental do bebé e a mostrar as etapas da avaliação, quando me chamou a atenção da cama do lado da janela, um rapaz novo, se calhar interno, a fazer a avaliação do som e do olhar do bebé. Ele tinha uma lanterna com uma bola vermelha e outra azul, mas meteu aquilo no bolso e convidou a mãe a chamar o bebé pelo nome, do lado esquerdo e do lado direito, e o bebé virava para um lado e para o outro 90 graus, cumprindo aquilo que era já patente, uma desejabilidade imensa de interagir, que é o expoente máximo que nós e os pais pretendem, que é descobrir mutuamente o quem é quem. Quem é este bebé que levamos para casa ao fim de dois dias, não sabemos o que lhe havemos de fazer, não sabemos como o vamos descobrir, não tivemos ajuda no hospital, não temos ajuda aqui em casa, é com as minhas amigas e às vezes aqui com a ajuda do médico de família do centro de saúde que a gente vai aguentando e vai fazendo pelo melhor.
A parentalidade está muito na moda, mas nem sempre com os princípios que deveria ter.
Bom, falei ao rapaz e disse-lhe: “Estive a reparar e fizeste uma avaliação como nós temos ensinado. Costumas fazer?” Costumo, disse ele. Aprendi com o professor. E eu disse: já pegou! É um dos grandes sonhos de Berry Brazelton e da sua equipa, é contagiar os profissionais de saúde com este novo modelo de avaliação.
Mas porque acha que é tão difícil isso acontecer? Fazer passar essa mensagem, essa filosofia?
Porque é outra linguagem. Aquilo que aconteceu com este rapaz é a nossa desejabilidade nas maternidades. Que no dia que o bebé nasça ou no segundo dia, pelo menos, haja alguém sentado ao pé da mãe a perguntar “então como está tudo a correr?”. E aí virá uma enxurrada de perguntas da mãe a querer saber mais do que é o seu bebé. E aí nós perguntamos: ele é mais sensível à voz ou ao olhar? Como é o comportamento dele? Como acha que é a sua personalidade? Esta é a oportunidade de explicarmos que com 24 ou 36 horas de vida é possível descobrir o bebé mais controlado, que se autorregula quando está chorar, ou a ser virado, ou despido; o bebé que se autorregula e responde de forma mais completa e suave em relação àquilo que a família vai perguntando. Nós hoje sabemos pela neurociência de que as diferenças fundamentais entre os bebés, nas primeiras horas de vida, vão repercutir-se em dominó até aos 5/6 anos. Nomeadamente, por exemplo, em relação à hiperatividade, não a patológica. Perceber como é a sua motricidade, porventura inibidora de outras descobertas como o olhar e o ouvir, a forma como ele responde às carícias quando está a chorar… Aqueles bebés que não precisam de chucha, graças a Deus, são bebés que se consolam facilmente, têm uma concentração fantástica e que mais tarde, aos 6 anos, nós percebemos que aquele bebé tinha já um autocontrolo diferente de outros, com particularidades específicas.
Está optimista?
Estamos numa revolução do conhecimento, numa revolução que nos capacita para a descoberta do bebé, para a nossa intervenção junto dos pais, junto dos avós, junto nomeadamente do profissionais de saúde que vão ver aquele bebé à nascença e depois aos oito dias no centro de saúde. O médico de familia vai ser provocado a entrar na nossa linguagem. Virá o tempo em que todas as mães portuguesas irão ter a possibilidade de partilhar o quem é quem do desenvolvimento, de interação, de vínculo, de autocontrolo. De saber que um bebé não precisa de chucha para nada porque logo de início vai, em segundos, levar a mão à boca e consolar-se. Chupar é a melhor gota para as cólicas, para aquilo que é suscetível de romper o equilíbrio e que aquele bebé já é capaz de controlar. E os pais percebem nesse momento que a autorregulação é fundamental.
Não ouve que isso é fácil de dizer para quem é conhecido por calar os bebés todos que lhe aparecem a chorar no consultório?
Uma vez apareceram-me no consultório os pais e um bebé que só chorava. O pai e a mãe apareceram a suar, o pai com o bebé ao colo só saltava, saltava para ele não chorar. E assim que ele parava passava o bebé para a mãe e a mãe a saltar, coberta de suor. Este bebé tinha uma motricidade muito sensível, com os tremores, com os sustos, com a desorganização dos membros superiores e inferiores. E, a certa altura, percebi que este bebé precisava de ter controlada a sua desregulação motora. Disse: ponha aqui a mão do bebé em cima da sua e tente travar esta atividade toda. Este bebé está descontente porque não aguenta várias horas neste stress todo. E assim o bebé calou-se, como por encanto. Está a ver, disse-lhe eu? É simples, só ajudou o seu bebé a estar, por segundos, mais seguro, mais controlado e a partir daí ele vai ganhar novas forças para novos controlos, para novas capacidades, para novas potencialidades. Aquele bebé era tão competente quanto os outros, mas não há dois bebés que mostrem a mesma competência de igual maneira. Eles são todos competentes, mas cada um à sua maneira. É essa descoberta das diferenças que inspira este livro de “Pensar a Criança e Sentir o Bebé”.
A criança precisa de sentir que tudo faz sentido na sua vida. A paixão do pai e da mãe com ela, dos avós, a professora da escola. Que tenham um sentido de paixão, um sentido de coerência. Quando os bebés têm stress, são infelizes, estão negligenciados, sobretudo com fome de amor, estas crianças estão em risco e nós temos de garantir-lhes uma coerência, que faz sentido viver, senão temos crianças como os órfãos da Roménia que já não olham, já não viram a cara. Pensam ‘para que é que eu hei-de fazer um movimento para a direita ou para a esquerda se não tenho nem um colo, nem uma palavra, nem uma melodia?’ Ficam como se fossem pedras, como se fossem coisas não vivas.
Organizámos um encontro sobre a felicidade, que deixou de ser um termo foleiro das revistas de cabeleireiro e temos um conceito científico de felicidade, em que ela implica essa coerência que eu abordei, essa forma de estar que dá sentido à vida, à criança e ao jovem, qualquer que seja a idade.
O que mudaria nos hospitais e nas maternidades nesse momento em que o bebé nasce? Que items faltam, por exemplo, aos hospitais amigos do bebé?
Falta o modelo. Não chega fomentar a amamentação e mesmo neste particular eu tenho o máximo de cuidado com isso. Porque há mães e famílias que, por infinitas razões, pessoais e individuais, decidem ou terão decidido, porventura conversando ou não com o pai — a mulher tem o direito de pensar sozinha o que fazer quando o bebé nasce e tem de o alimentar — não amamentar. Se a mãe pergunta eu digo que a amamentação é muito importante, mas quando percebo que ela está a colocar reticências eu não vou aumentar-lhe a culpabilidade, a dureza de ela poder pensar que não é uma mãe tão boa como as outras, porque não amamenta e vê tudo à volta a dar de mar.
Tão importante quanto a amamentação, sendo hospital amigo do bebé, é garantir que esse bebé é ajudado sobretudo na construção de um vínculo, no reforço de uma ligação, que porventura já vem de trás. Mas nem sempre o instinto familiar está garantido. É preciso ampará-lo, motivá-lo.
Isso faz-se como?
Quando o bebé tem de ser visto, e normalmente é só visto uma vez, o profissional deve ter uma intervenção educacional e não o modelo patológico que nos ensinaram de ver a anca, auscultar, etc. É preciso caminharmos para outra mentalidade. Como dizia o professor Pádua uma vez que foi dar uma aula: “Estamos aqui em mais uma das faculdades da doença deste país”. E eu secundo isto com toda a vivacidade. Aprendi medicina no modelo patológico: perturbação; semiologia da observação, diagnóstico, tratamento, prognóstico. Isto é o modelo patológico. Mas eu falei no interno que estava a fazer o seu exame daquela forma maravilhosa, lembra-se? Temos depois todas as enfermeiras que estão na maternidade e que acompanham a mãe durante as 48h que a mãe lá está, de uma maneira disponível, mas porventura muito confinada… “Então vamos lá, a mãe agora vai descansar, levo o bebé para o berçário e depois volta cá.” Eu aviso sempre as mães na consulta pré-natal que não deixem o bebé sair de ao pé delas nem por um minuto, porque a probabilidade de, durante esse minuto, receberem uma garrafa com uma tetina pela boca abaixo, bebés competentes e resilientes, é enorme.
Eu ainda sou do tempo em que o berçário de Santa Maria tinha um vidrão enorme, onde estavam os berços e os bebés todos vestidos de igual, todos acastanhados. Um dia estavam dois pais homens atrás do vidro a falar um com o outro: “Já viste qual é o teu? Não, não consigo. É capaz de ser aquele ali, mas estão vestidos das mesma cor, parecem aqueles pintos que nascem nos aviários”. Isto já não existe, mas existe ainda um risco: em 70% dos casos, os bebés vão para um sítio para a mãe poder dormir sozinha. A mãe não precisa de descansar e dormir, precisa é de namorar com o seu bebé. Quando muito, precisa de duas ou três horas. Trocar palavras de amor, fazer a voz de bebé, trocar juramentos, naquela linguagem que é uniforme em todas as línguas do mundo: os bebés identificam as suas mães através da melodia com que elas falam nessa voz de bebé. Por isso defendemos a existência de uma consulta pré-natal, que é tão importante e também serve de alerta para o que vai acontecer no hospital quando o bebé nascer.
Pode explicar melhor em que consiste a consulta pré-natal?
É uma revolução. Fundamenta a descoberta do bebé, a partilha com a família, a amamentação, ensina a respeitar o comportamento e a personalidade de cada bebé, permite avaliar à distância como vai ser aquela criança aos seis anos em termos de mobilidade, de desregulação motora, de fixação de atenção, de concentração. Estes parâmetros todos permitem-nos saber se aos seis anos essa criança vai aguentar os 50 minutos de uma aula, por exemplo. Eu, por exemplo, aguento em média 40 minutos a ouvir uma conferência, se ela não for má. [risos] Se for má, ao fim de 20 minutos quero ir embora. Hoje, medimos a avaliação comportamental do recém-nascido e a progressão da interação mãe-bebé,. M as é fundamental os pais acreditarem que seis anos antes, nós já conseguimos predizer alguma coisa em termos comportamentais.
A consulta demora cerca de trinta minutos, tempo durante o qual tentamos ir ao encontro da identidade e da circunstância daquele bebé que ainda não nasceu. A identidade é a forma como cada um interage com o outro, como é que a mãe nos conta quando é que começou a chamar Manelinho ou Joãozinho ao bebé. Há muitas mães que nos dizem, ‘foi só há 15 dias, estávamos na dúvida’. Não é que isto seja um risco grande, mas vale uma intervenção de 10 minutos.
Mas qual é a importância disso?
Estes pais, porventura já apaixonados pelo bebé, não tinham ainda pessoalizado essa paixão o que é uma fase importante. Em meia hora falamos de tanta coisa que os pais querem saber e tudo isso reforça a sua paixão com aquele bebé e que eles depois de o bebé nascer vão ver com os seus próprios olhos que ele gosta mais de ouvir do que ver, ou que gosta muito da música que a irmã mais velha canta, que tem uma personalidade diferente de todos os outros. Na consulta acontece toda uma explosão de perguntas, de questões, de ansiedades que no terceiro trimestre os pais já têm e que através delas e das respostas que damos facultam a descoberta da identidade, da circunstância que envolve o bebé, o que chamamos de epigenética.
A forma como os pais nos contam: ‘é verdade, ele sabe distinguir a mão da mãe da mão do pai a fazer festinhas na barriga’ faz com que logo aí o profissional aproveite essa oportunidade e promova e desenvolva a paixão esperada. ‘Já viu como ele distingue a voz de um e de outro? E agora ele nasceu há quatro horas e quer falar comigo… E nós dizemos: “Ele está a precisar de namorar, tal como você precisa de namorar o seu bebé. E logo aí, falamos de outra coisa: as visitas. É importante a família partilhar a explosão do nascimento, mas também é muito importante que a família perceba — e dou essa tarefa aos pais homens — que aquelas pessoas precisam do seu espaço e que no namoro não há interferências. E este é um namoro muito especial entre bebé e mãe. Portanto sugiro que o pai avise a família e até organize um plano de visitas em casa, para os amigos e família, não alterando nem subtraindo nada àquelas primeiras horas de vida.
E tem de baixar expectativas aos pais sobre o bebé que acabou de nascer?
Todos os pais que vi durante a minha vida têm expectativas enormes, muito diferentes. Acho que a nossa missão não é levantar expectativas, mas é acompanhar, não é impor comportamentos.
Estou a perguntar no sentido de, por exemplo, os pais acharem que há os bons filhos e os bons pais, já dorme 12 horas e só tem uma semana, não chora… O bebé ideal, a família ideal…
Na consulta pré-natal valorizamos muito a vivência fantástica do bebé ideal, do bebé cor de rosa em contraste com o bebé real. O bebé ideal é o que mama bem, a mãe sorri antes de ele começar a mamar, e depois ele dá sinal à mãe com um olhar profundo, que a refeição acabou… Este bebé maravilhoso, que eu não sei se já vi algum na vida, é capaz de não existir mesmo. As expectativas de todo o pai e toda a mãe são grandes. Portanto falamos do bebé real. E o bebé real tem cólicas, por exemplo. Todo o bebé do mundo tem cólicas, o indiano, americano, o chinês, o português, tem cólicas ao fim de duas semanas. E agora veja como é importante o modelo que defendemos. No modelo relacional apercebemo-nos de que o estado de aprendizagem de um bebé nas primeiras horas de vida é uma coisa não mais igualável. Imaginemos como nos sentimos na véspera de um exame que vai determinar a entrada na faculdade, cheios de tensão acumulada, podemos sair de casa, dar uma volta ao quarteirão, tentar dormir, qualquer coisa. Pois o bebé não pode dar voltas ao quarteirão, nem refugiar-se no sono, mas acumula na mesma essa tensão e essa tensão são as cólicas, que não dependem de gotas miraculosas. O bebé não precisa de remédio para as cólicas, precisa de outra atenção, de uma massagem, de uma cantiga e isso é diferente consoante está com a mãe ou com o pai. Por isso é tão importante descobrir as diferenças de personalidade do bebé tão cedo quanto possível.
Mas presumo que a maioria das pessoas tem uma experiência do modelo patológico, da ida ao pediatra para fazer um exame de avaliação física. Na maternidade então será assim a esmagadora maioria das vezes, não?
Uma das nossas investigações mais longas foi a de um grupo de bebés em que os médicos que os viram na maternidade usaram os 7 minutos de que dispunham a falar dos comportamentos do bebé e falar aos pais. Dividimos população em dois grupos: um com 7/8 minutos do nosso modelo, outro com prática normal da maternidade: auscultação, palpação abdominal, verificação do clique da anca…. Seguimos estas mães aos 8 dias de vida, aos 3 meses, aos 6 aos 9 aos 18, aos 3 anos, aos 6 e aos 9 anos de vida. O que constatamos, entre outras coisas, é que as mães, 9 anos depois do nascimento, lembravam-se exatamente das palavras que o pediatra que usou o nosso modelo pronunciou e lhes dirigiu nove anos antes na maternidade. É por isso de extrema importância a projeção daquilo que podemos fazer para ajudar uma família na consulta pré-natal, na descoberta do bebé recém-nascido.
Quanto mais cedo tivermos a oportunidade de garantir uma coerência, um sentido de competência, de felicidade em cada bebé e em cada família, a vontade que temos que isto aconteça vai mudar aspetos fundamentais do comportamento, alguns só observáveis 6 anos, 7, 8 anos depois.
Mas nem todos os pediatras têm essa formação…
No outro dia perguntaram-me: os bebés são todos diferentes… E os profissionais, são todos diferentes? São, necessariamente, e cada vez mais. Eu acredito que o desafio só está ganho quando ajudarmos a substituir o modelo patológico pelo relacional, baseado na humanidade de cada mãe, de cada pai, patente na forma como a criança organiza a sua arquitetura cerebral, quando come, quando brinca, quando está com a avó e o avô, quando passeia pelas ruas. Porque quanto mais cedo identificarmos as diferenças e dermos o nosso apoio, não só ao Joãozinho que tem uma auscultação e uma apalpação normal, mas às suas particularidades emocionais e afetivas…
Quando eu dava aulas fazia o seguinte exercício com os meus alunos. Mostrava um slide de um berçário com 30 berços todos iguais, os bebés com roupa da mesma cor, todos virados para o mesmo lado, praticamente com o cabelo igual e perguntava-lhes: “Estes bebés, o que vos parecem? São i guais? São todos diferentes?”. Alguns respondiam: “Professor, são todos iguais, mas se utilizarmos o estetoscópio podemos encontrar diferenças”. É verdade, embora seja uma raridade haver mal formações cardíacas num bebé, mas há. Pode ser. E mais?, perguntava eu. Então, diziam eles, que se faça uma boa apalpação abdominal, se não há nada na auscultação, na eventual deteção de um tumor congénito, ou na eventual presença de um clique na coxa, mostrando uma disfunção articular, que obriga a fazer uma ecografia.
Se não houvesse o modelo touchpoints continuaríamos a auscultar, a ver a barriga, a fazer um exame neurológico, mas aí não haveria ninguém diferente, são todos iguais, com raras anomalias. O fundamental é garantir que a resposta àqueles que nos perguntam “são todos diferentes?” seja, “sim, são”. Quem fez um curso de touchpoints nunca mais vai achar que faz sentido prosseguir no modelo patológico.
Que perguntas fazem os pais nas consultas?
75% das consultas são com perguntas sobre o comportamento do bebé. Não se preocupam muito sobre a borbulha ali, querem saber coisas da vida real de cada bebé. Falamos sobre a alimentação, sobre vacinas, sobre como dorme. E sim, falamos muito sobre o sono. Às vezes dizem “se é para o outro ser assim, a gente desiste!” e aí há uma oportunidade mágica de falarmos sobre o sono. Digo sobre o sono que a primeira coisa que é preciso ter bem presente é que não há receitas. E as que há são más. Vivemos ainda na febre da receita.
Não podemos ser intrusivos. Há uma receita individual, que é por exemplo mudar o estilo de vida na grávida. “Ele só está bem quando eu ando, quando estou quieta dá-me pontapés na barriga.” Eu digo: “Provavelmente o seu bebé gosta de passear, de apanhar ar, dos seus circuitos visuais, tudo isto precisa de ser apoiado, de ser encarado como a maravilha do comportamento do seu bebé. O seu bebé fala para si, não precisa de tradutores nem de coisas escritas em modalidade de receita. É a sua criança e só ela vai ajudá-la a descobrir o que ela precisa. A sua criança não é mais uma que precisa de uma receita universal, mas é alguém único e a necessitar da garantia de uma efetiva participação e intervenção.
O sono é uma forma fundamental de o bebé revelar as suas necessidades. Não faz sentido termos uma consulta e dizer aos pais que o bebé tem de dormir 9 horas e depois da refeição mais uma sesta e depois ao fim da tarde mais isto. Isto não faz sentido, porque há bebés que precisam de dormir 12 horas e outros que se aguentam com menos. Os bebés mais curiosos, mais atrevidos, mais despertos, mais sonhadores, mais qualquer coisa que lhes dê oportunidade de aprender, porventura terem mais cólicas, mas aprender, porventura têm mais tensão, mas promovem mais a descoberta, o conhecimento, as competências.
Ouvir um pediatra falar tantas vezes da felicidade realmente não é muito comum, ou melhor, se calhar não é o que as pessoas esperam ouvir de um especialista em saúde infantil.
Tenho 50 anos de prática pediátrica, tive oportunidade de fazer investigação e de a publicar, e parece impossível, com estas oportunidades, que em Portugal o nosso sonho está porventura tardio. Com investigação feita, com livros publicados, com a nossa pressão de descobrir e ajudar a família a sentir-se coerente, a sentir-se bem, mãe e pai, que o bebé está a gostar de ser gostado, isto reforça os vínculos que estão em risco. Temos uma taxa de mortalidade infantil das melhores do mundo, menos de 3 por mil, temos outros indicadores que não nos sossegam. Temos a taxa de divorcialidade mais alta da Europa, um país católico e religioso, com casamentos pela igreja extremamente bem decorados e fotografados… Cada bebé é um bebé de ouro, mas a família está em risco de não se chegar a constituir como família, as relações interpessoais estão deterioradas. Isto obriga-nos a reforçar o instinto das famílias, sobretudo daquelas que esperam o primeiro filho. Como foi a construção da paixão durante nove meses de gravidez? Como foi a paixão pré-nupcial? Como decorreu o apoio? Foi só ecografias e análises? O que houve mais de aproveitamento de constituir uma paixão entre pais, bebé, profissional?
Nós conhecemos os bebés. Identificamos uma disfunção comportamental, bebés com 30 tremores em 25 minutos, com 7 ou 8 sustos, com modificação de manchas vermelhas e brancas na pele. Este stress, estas desorganizações, devem ser aproveitadas para definir um programa de felicidade. Os casais têm de ser ganhadores. Espero que num futuro não muito longínquo os bebés possam ser apoiados antes do nascimento. É prioritário investir na educação dos profissionais. Precisamos de um Ministério da Criança, para que se possa fomentar o que a criança precisa, principalmente nos primeiros anos de vida: ser amada, ser aquecida, ser alimentada, ser apaixonadamente descoberta por quem quer que esteja nas maternidades a ajudar os profissionais neste volte face, nesta nova missão.
Por falar em direitos das crianças e da família… O que pensa sobre as licenças parentais?
Já cresceram, já ganharam novas oportunidades, mas ainda não chega. O primeiro ano de vida é um ano fabuloso de encontros, de expectativas, de responsabilidades, de aprendizagens. Diria que deviam ser de um ano, o primeiro ano de vida, é o ano decisivo, em que se constrói a arquitectura da casa. O alicerce é o mais importante. É o ano em que se organiza o sistema nervoso central, o comportamento, é quando se projetam de uma maneira mais sistémica e mais completa as desorganizações, os desequilíbrios, que levam a que os pais ganhem confiança. O país ficaria mais rico investindo na criança, na ligação, no modelo relacional.
Pais e mães?
Reúno na mesma categoria pais e mães. Nos anos 70/80 era impossível fazer investigação com pais homens, tinham emprego, não podiam faltar ao emprego, diziam que isto eram coisas de mãe. Arredavam-se. O estudo em que medimos a influência da consulta pré-natal no sucesso da amamentação e no sucesso da vinda dos homens à nossa consulta foi espantosa. As mães que vieram à nossa consulta, aos 3 meses 74% ainda amamentava os seus filhos; aos 6 meses 30 e tal por cento amamentava.
Só?
Sim, só. Mas 72% dos pais vieram à nossa consulta.
Se pudesse pôr fim a alguma prática que existe na pediatria seria qual? Acabava com quê?
O modelo em que eu acredito não entra o erro. Não definiria pela negativa. Temos de criar a oportunidade de… Não reforçaria a negativa. Tudo o que eu descubro, quanto mais converso com as famílias na consulta pré-natal, a riqueza é tão grande, que eu diria que até o que pode ser negativo ou de risco não é, é uma oportunidade para crescer, para fomentar o desenvolvimento intelectual afetivo, para acompanhar e fazer acreditar que aqueles pais podem ter a ajuda daquele profissional ao longo daqueles anos de vida. Vamos aproveitar esta desorganização e fazer dela uma oportunidade positiva para construir paz, felicidade e harmonia no casal, baixar índices de divórcio, que essas taxas denotam qualquer coisa que não vai bem. Essas pessoas não têm porventura acesso a uma consulta pré-natal, a uma consulta de desenvolvimento, e têm esse risco que nós podemos detetar logo nos primeiros meses de vida do bebé. O nosso modelo relacional é de positividade, nós não partimos nunca da negativa.