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Hitler e Stalin são frequentemente invocados em disputas ideológicas primárias entre esquerda e direita, num concurso macabro que visa apurar quem foi mais ignóbil e quem matou mais, o que, além de ter o seu quê de obsceno, não conduz a conclusão alguma. Não foi esse o propósito do historiador britânico Richard Overy em Os Ditadores, publicado originalmente em 2004 e que é agora reeditado em Portugal pela Bertrand (a primeira edição é de 2005), com escorreita tradução de Victor Antunes.

“Os Ditadores”, de Richard Overy (Bertrand)

Overy não pretende fazer contabilidades tétricas mas analisar as semelhanças e diferenças entre os regimes a que os dois ditadores presidiram, tendo o cuidado de fazer notar que “comparar não é o mesmo que estabelecer uma equivalência”. E faz questão de realçar que não procura sugerir que Hitler e Stalin “tivessem o mesmo tipo de personalidade […] nem que a partir destes dois exemplos se podem deduzir as características gerais de um ditador ou de uma ditadura”.

O historiador britânico poderia fazer suas as palavras do escritor francês Georges Bernanos, em Les grands cimetières sous la lune: “Todos os Terrores se assemelham, todos se equivalem, não me farão distinguir entre eles, já vi muitas coisas, conheço demasiado bem os homens, sou demasiado velho. O Medo repugna-me seja em quem for e atrás das belas palavras dos carniceiros ele é a única coisa que existe. Não há outro motivo para o massacre a não ser o medo, o ódio é um pretexto”. O trecho de Bernanos merece ainda maior admiração se atendermos a que foi escrito em 1938, sob o impacto da experiência da Guerra Civil de Espanha, numa altura em que o terror nazi ainda não desabrochara em pleno e ainda faltava conhecer a verdadeira dimensão e crueldade do terror soviético.

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Pessoas normais ou psicopatas?

Overy considera que Hitler e Stalin não eram pessoas normais, mas que também não eram mentalmente desequilibrados do ponto de vista clínico e que eram imputáveis pelas suas acções.

Ambos eram movidos por uma “dedicação sem reservas a uma causa, para a qual […] se consideravam os executores históricos”. Parte da obsessão com a morte que afligia ambos resultava do receio de não viverem o tempo suficiente para cumprir a missão de que se julgavam investidos.

É ilustrativa dessa absoluta convicção de ser um predestinado, a proclamação com que, a 1 de Abril de 1924, Hitler concluiu a sua defesa no tribunal de Munique, onde era acusado de ter instigado o “Putsch da Cervejaria”: “Mesmo que me pronunciem mil vezes ‘culpado’, a deusa eterna [a História] do tribunal eterno rasgará, rindo até às lágrimas, a petição do procurador de Estado e o julgamento do tribunal, pois ela declara-nos livres!”. Overy não o faz, mas teria sido oportuno confrontar esta afirmação com a confidência que Stalin um dia fez a Molotov: “Sei que depois de morrer lançarão um monte de infâmias sobre o meu túmulo. Mas o vento da História irá varrê-las inexoravelmente”. Ou, já agora, com a frase com que, a 16 de Outubro de 1953, Fidel Castro rematou o discurso de quatro horas perante o tribunal que o acusava do assalto ao quartel de Moncada: “A história absolver-me-á!”.

Overy realça outras similitudes entre as personalidades de Hitler e Stalin: ambos eram “impiedosos, oportunistas e flexíveis nas suas tácticas, e as suas acções políticas centravam-se sem rodeios na sua sobrevivência pessoal. Ambos foram subestimados, quer por colegas quer por adversários, que não foram capazes de perceber que personalidades tão modestas e discretas, quando em repouso, disfarçavam um núcleo duro de ambições, de implacabilidade política e de desprezo amoral pelos outros”.

Este desprezo está patente nesta confidência feita em meados dos anos 30 por Hitler a Hermann Rauschning, um aliado (temporário) dos nazis: “As massas são como um animal que obedece aos seus instintos. Não chegam a nenhuma conclusão por força do raciocínio […] Nas grandes concentrações de massas, o pensamento é suprimido”. Há uma frieza e uma falta de empatia similares na frase atribuída a Stalin de que “uma morte é uma tragédia, um milhão de mortes é uma estatística”.

Congresso do Partido Nazi em Nuremberga, Setembro de 1937

A imagem do líder

Os dois ditadores divergiam muito nas capacidades oratórias e postura: nos anos que se seguiram à Revolução de Outubro, Stalin era uma figura apagada, de aparência “modesta e discreta, sem nada do fulgor e segurança intelectual evidenciadas por muitos dos seus camaradas. A sua voz é recordada como ‘átona’, os seus dotes oratórios eram diminutos, lia devagar textos previamente preparados, com pausas e engasgos ocasionais”.

[Discurso de Stalin sobre a nova constituição soviética, no Teatro Bolshoi, Moscovo, a 11 de Dezembro de 1937: é difícil decidir o que é mais impressionante, se a banalidade do que é dito, se a displicência e falta de jeito do orador, se o entusiasmo acéfalo com que cada palavra é recebida]

https://youtu.be/nLqplbwD644

Parte desta postura era dissimulação, mas a verdade é que Stalin nunca foi um orador convincente, ao contrário de Hitler, que, ao longo da década de 1920, “conseguiu transformar as suas lengalengas enfadonhas na triunfante oratória pública que se tornou o seu atributo mais visível”.

[Montagem de excertos de discursos de Hitler: mesmo descontando o efeito da banda sonora grandiloquente que lhe foi sobreposta, a premeditação e eficácia da oratória de Hitler é bem audível (e visível)]

https://youtu.be/DFNUdCtMXWE

Embora a sua figura fosse generosamente retocada nos cartazes de propaganda, Stalin estava longe de viver obcecado com a sua imagem, como acontecia com Hitler, que “tinha horror a parecer ridículo” e instruiu o seu fotógrafo pessoal, Heinrich Hoffmann, para jamais o fotografar de óculos ou fato de banho.

Uma rara imagem de Hitler com óculos

Mas a verdade é que nem Hitler nem Stalin possuíam uma imagem física impressionante: A descrição que Overy oferece de Hitler na década de 1920, com “a emblemática gabardina suja, o pequeno bigode escuro, a madeixa, a face pálida e levemente gorducha, e até os olhos, de um cinzento azulado, que por vezes se quedavam vagos e sem expressão”, contrasta com o efeito magnético que tantos – mesmo os que não simpatizavam com as suas ideias – confessavam sentir na sua presença.

Após terem consolidado o poder, ambos os ditadores levaram a extremos inauditos o culto da personalidade, embora Overy faça notar que o ponto de partida era completamente diferente em Hitler e Stalin. Para o primeiro, “a personalidade era o critério determinante da liderança” e era nela, não no conceito de maioria, que o Estado moderno e eficaz deveria assentar; entendia que “os génios extraordinários [em que obviamente se incluía] não têm lugar para considerações sobre a humanidade vulgar”.

Já Stalin surge num contexto revolucionário que pretende substituir a liderança pessoal, simbolizada pelo czar, por um partido de massas, mas não tardaria que Stalin acabasse por reconhecer que, em períodos de crise, se torna necessária “a concentração num único ponto de todas as forças do proletariado”. Desta exigência de uma linha partidária única à imposição de um líder único foi uma pequena distância – “o povo precisa de uma estrela”, admitiria mais tarde. Há alguns relatos de que Stalin manifestou resistência ao culto da personalidade que foi desenvolvido em seu torno, mas a verdade é que, embora detendo o poder absoluto, não fez nada para a abolir ou sequer moderar, ou por apreciá-lo ou por entender que era útil à governação do país e à submissão das massas, ou porque, como observa Overy, nas autocracias populares se estabelece “uma cumplicidade entre o governante, que projecta a imagem de herói mítico, e os seguidores, que a santificam e lhe conferem substância”, o que faz com que “os ditadores dificilmente consigam libertar-se do espectáculo que ajudaram a montar”.

Delegados ao VIII Congresso do Partido Comunista Russo, 1919. No centro reconhecem-se facilmente Stalin (de quépi), Lenin e Kalinin. Em versões subsequentes da foto, os restantes delegados foram sendo suprimidos (nalguns casos, não só da foto como do mundo físico), restando apenas Stalin, Lenin (na qualidade de grande ideólogo e revolucionário) e Kalinin (na qualidade de idiota útil e subserviente)

O culto do líder

O culto em torno de ambos os líderes atingiu proporções tão extremas, que hoje parecem francamente ridículas. São disso exemplo a atribuição a Stalin de títulos oficiais como “Grande Arquitecto do Comunismo”, “Génio Iluminado da Humanidade”, “Corifeu da Ciência” e “Jardineiro da Felicidade Humana” e da imposição do seu nome às cidades de Stalingrado, Stalinogorsk, Stalinbad, Stalinski, Stalinograd, Stalinisi e Stalinaoul. Em 1935, o Pravda reproduzia um discurso de Aleksandr Avdeenko (um delinquente juvenil que o comunismo e o trabalho árduo tinham convertido num trabalhador-modelo e, depois, num escritor especializado no louvor do regime) que não hesitava perante hipérbole alguma: “os homens de todas as gerações proclamarão o teu nome, poderoso, belo, sábio e maravilhoso. O teu nome está gravado em todas as fábricas, em todas as máquinas, em todos os lugares da terra, e no coração de todos os homens”. Alguns louvores a Stalin entravam mesmo na esfera do divino, como este que foi publicado no Pravda em 1936: “Oh Grande Stalin, oh Guia dos Povos/ Tu, que não nasceste de nenhum homem/ Tu que deste fertilidade à Terra”.

Se se percebe que, para os escritores soviéticos, estes panegíricos eram indispensáveis para assegurar as boas graças do regime e, em última análise, a sobrevivência, já é mais difícil de compreender que intelectuais estrangeiros que visitavam a URSS se lançassem em encómios de natureza não menos delirante. Tome-se este trecho de O mundo da paz: União Soviética e as democracias populares, escrito por Jorge Amado após passar o Inverno de 1948-49 na URSS, a convite da União dos Escritores Soviéticos: “[Stalin] sábio dirigente dos povos do mundo na luta pela felicidade do homem sobre a terra. […] Seu nome é grito de águia contra os senhores das fábricas, é doce gorjeio de pássaro para os trabalhadores das fábricas. Sua presença se estende mais além dos limites da URSS, sua presença está onde quer que o homem lute contra a opressão e a miséria […] Amamos em Stalin a União Soviética marchando para o comunismo. Amamos em Stalin a cultura, a juventude, a beleza das coisas, a harmonia e a música. Ele simboliza tudo isso e muito mais. Stalin da gente simples, dos trabalhadores oprimidos, dos que se libertam, dos que lutam, dos que constroem a nova vida. A simples gente do mundo, os trabalhadores, fitam a face desse homem que trabalha no Kremlin e saúdam nele a beleza da vida, a alegria de construir, a liberdade que se conquista, a fraternidade entre os homens”.

Stalin aceitou muitas das honrarias e títulos que lhe foram conferidos, mas rejeitou duas propostas por lhe parecerem excessivas: o rebaptismo de Moscovo como Stalinodar (“Dádiva de Stalin”) e a alteração do calendário para que tivesse início no ano do seu nascimento. Até o jornal Izvestia, caixa de ressonância do PCUS, admitia, em Agosto de 1936, que “os escritores já não sabem a que te hão-de comparar, e os nosso poetas já não têm mais pérolas de linguagem para te descrever”.

Hitler no Festival das Colheitas de Bückeberg, 1934: as aparições públicas de Hitler eram minuciosamente encenadas

Embora não tenha sido “tão desmedido e ingénuo como o culto de Stalin na URSS”, na Alemanha assistia-se a fervor análogo em torno de Hitler, com um dirigente partidário nazi a compará-lo a “um novo Jesus Cristo, maior e mais poderoso”, um ministro da Igreja a ver nele “o verdadeiro Espírito Santo”, Robert Ley (dirigente da Frente Alemã para o trabalho) a proclamar que “o Senhor enviou-nos Adolf Hitler” e Rudolf Hess (o braço direito de Hitler) a parafrasear a Bíblia (Isaías 9:6) a afirmar “nasceu-nos um menino em Braunau” (Braunau am Inn, a vila natal de Hitler), “pequenos ‘altares de Hitler’ [a proliferarem] em lugares públicos e residências privadas” e Mein Kampf a ser considerado (pelo programa do movimento cristão pró-nazi) como “o mais importante documento escrito do nosso povo” e um repositório dos “mais puros e verdadeiros preceitos éticos”.

Homens providenciais em tempos de crise

Overy considera que “nenhum dos dois homens poderia, pura e simplesmente, ter usurpado directamente o poder. As [suas] ditaduras foram fruto de uma conjuntura histórica singular em que as ambições dos dois dirigentes se encaixavam, ainda que de forma imperfeita, com as aspirações daqueles que pretendiam representar”.

No caso de Hitler, a conjuntura foi a “excepcional crise política e social desencadeada pela depressão de 1929 [que] deu origem a uma revolução nacionalista que pôs em causa todo o sistema político, a cultura e os valores da república e que ansiava por uma autêntica comunidade nacional germânica”. No caso de Stalin, foi a “segunda revolução” iniciada em 1928, “um período de extraordinária agitação social, com a introdução da colectivização, os Planos Quinquenais e um continuado assalto à cultura, às ideias e ao saber definidos como ‘burgueses’”. Foi neste contexto que Hitler e Stalin se assumiram “como os representantes de todos quantos ansiavam pela mudança e pela estabilidade. Sem a crise, é mais difícil acreditar que qualquer dos dois políticos se pudesse ter alcandorado à posição de ditador”.

Overy chama a atenção para o facto de o culto messiânico em torno de Hitler não ter sido “uma coisa enxertada na cultura política alemã, o seu apelativo derivou de uma expectativa generalizada, ainda que de maneira nenhuma unânime, do advento de um redentor alemão”.

“O porta-estandarte” (Der Bannerträger), por Hubert Lanzinger, c. 1935: Hitler surge não como o arrivista de modestas origens que era, mas como a encarnação de uma Alemanha ancestral, nobre e cavaleiresca. Consta que, desagradado com a qualidade de muitas das obras seleccionadas para a Grande Exposição de Arte Alemã, em Munique, em 1937, Hitler terá escolhido este quadro para substituir algumas obras que mandou retirar da exposição. Em 1945, quando o quadro foi apreendido pelas forças americanas, um soldado golpeou o rosto de Hitler com uma baioneta

Por seu lado, após a morte de Lenin, Stalin foi manobrando habilmente para se apresentar aos olhos do povo “como o único verdadeiro executor da teoria revolucionária”. Para isso, Stalin fez publicar em 1924 Os fundamentos do leninismo (um manual leninista para não-iniciados) e, na luta política que travou ao longo da década de 1920, tudo fez para se afirmar como único intérprete autorizado do leninismo e ocultar os registos das manifestações de desagrado e suspeição de Lenin em relação à sua pessoa. A Bukharin e seus apoiantes lançou esta acusação: “Vocês não são marxistas, são curandeiros. Nenhum de vós percebeu Lenin”. Em 1929, Bukharin acabou por ser demitido dos cargos que detinha no Comintern e no Pravda; em Novembro desse ano foi também expulso do Politburo e em Dezembro Stalin foi exaltado pelo Pravda como “o primeiro aluno de Lenin”. Mesmo que fosse verdadeira tal distinção, resta saber que utilidade prática poderá ter uma ideologia política tão abstrusa que só um homem, em todo o planeta, é capaz de a compreender.

Lenin e Stalin em Gorky, Setembro de 1922

Perspectivas sobre a democracia

Apesar de ocuparem pólos políticos opostos, Hitler e Stalin tinham perspectivas coincidentes sobre a democracia. Proclamou Stalin, em 1936, que esta era, “nos países capitalistas […], em última análise, a democracia dos poderosos, democracia para uma minoria que possui riqueza […] O povo soviético apenas precisava de um partido, pois já não existiam as divisões entre capitalistas e trabalhadores ou entre senhores da terra e camponeses”. Poucos meses depois, Hitler explicava a uma assembleia de dirigentes nazis que “acima de tudo, não podemos tolerar uma oposição, pois tal certamente redundaria de novo na fragmentação”. Para ambos os ditadores, escreve Overy, “os sistemas multipartidários eram vistos como expressões de agitação social e de lealdades divididas, não de opções políticas livremente assumidas”.

“Cada um dos regimes se apresentava como a escolha do povo, representando e negociando em seu nome” (Overy). A representação dos interesses da totalidade do povo soviético era assegurada pelo Partido Comunista e pelo Estado, tal como na Alemanha “a democracia não [queria] dizer mais nada do que o governo do Volk pelo Volk” (nas palavras de um jurista nazi). Perguntava, retoricamente, Hitler, num discurso em 1937: “O que pode haver de mais belo para um povo do que saber que das suas fileiras, sem olhar às origens, ao nascimento, ou a qualquer outra coisa, saem os melhores homens que podem alcançar os lugares mais altos?”.

[Nuremberga, 1934: Heinrich Himmler (das SS), Hitler e Viktor Lutze (das SA) na cerimónia conhecida como Totenehrung (“Homenagem aos mortos”), dedicada aos que tinham caído na defesa do ideal nacional-socialista – e em particular aos 16 “mártires” tombados no Putsch da cervejaria, em Munique, em 1923, cuja importância foi extraordinariamente empolada, convertendo-se no momento fundador do partido nazi]

https://youtu.be/d1xYrcYTj58

Esta pretensão da “democracia socialista” e da “democracia alemã” de “[representar] colectivamente o povo de uma maneira que os sistemas parlamentares liberais” não eram capazes, encontra eco nos movimentos populistas que têm vindo a ganhar ascendente na política europeia e norte-americana nos últimos anos e que pretendem uma ligação mais directa ao povo, sem a intermediação de uma classe política que é denunciada como corrupta e tolhida por redes de interesses inconfessáveis.

Quanto aos métodos empregues no combate político, os dois ditadores não poderiam estar mais próximos: ao saber da Noite das Facas Longas (quando em Junho de 1934, Hitler fez uma implacável purga nas SA e ordenou a execução do seu líder, Ernst Röhm), Stalin exultou: “Hitler, mas que grande homem! É assim que se lida com os inimigos políticos”.

Viver com o terror

Uma pergunta aflora amiúde quando se aborda a história do nazismo e do stalinismo: “Por que razão os alemães e os soviéticos aceitaram sem grande resistência ou questionamento a construção de uma máquina repressiva tão abrangente e implacável?”

Responde Overy que “os dois regimes apresentavam o aparelho de segurança do Estado como um instrumento de protecção da maioria da população, a qual não se envolvia em actividades subversivas”. E o povo estaria tanto mais disposto a aceitar a protecção quanto maior fosse a percepção da ameaça – e, em ambos os países, a máquina de propaganda foi eficaz, impingindo ao povo alemão a existência de uma vasta e sinistra conspiração judeo-bolchevique e criando no povo soviético a ideia de que poderosas forças reaccionárias, conluiadas com potências estrangeiras e o capitalismo internacional, estavam a minar permanentemente a URSS. Portanto, na versão “oficial”, ambos os regimes combatiam “incansavelmente contra a subversão e a degradação da vida nacional. Esta guerra mortal e sem quartel fazia-se em nome do povo. O terror era representativo”.

“O culpado pela guerra!”: o judeu. Cartaz nazi de 1943

No entanto, havia diferenças substanciais entre os sistemas repressivos na Alemanha e na URSS. “Apesar de todas as suas evidentes injustiças e incompetência, das suas arbitrariedades e artificialismos legais, o sistema soviético operava segundo fundamentos jurídicos reconhecidos”. Ou seja, as investigações podiam ser tendenciosas e perversas e os julgamentos podiam ser farsas, mas o regime sentia-se obrigado a conduzir investigações e encenar julgamentos. Mesmo nos períodos de repressão mais intensa, “a segurança do Estado nunca teve o direito de deter pessoas e de as encarcerar ou executar sem as ouvir nem formular uma acusação”. Já na Alemanha a repressão era exercida em plena ilegalidade – logo em 1936, “uma nova lei isentou a Gestapo de qualquer ingerência dos tribunais, permitindo-lhe decidir quem era criminoso político e o que era crime político”.

Claro que a observância de um simulacro de justiça não atenua a brutalidade do aparelho de segurança e ser abatido com uma bala na nuca de acordo com trâmites vagamente legais não traz mais consolo à vítima inocente do que ser executado extra-judicialmente.

“Morte ao capitalismo internacional!”: o capital surge mancomunado com a igreja e o nazismo na luta contra os trabalhadores. Cartaz soviético, por V. Deni, 1931

Uma diferença fundamental

Apesar de ambos os regimes terem causado milhões de vítimas, instaurado um aparelho de segurança repressivo e sanguinário e de terem afinidades em vários domínios, Richard Overy faz questão de destacar uma diferença essencial entre eles, pelo menos em termos de objectivos formais: “o comunismo soviético tinha por objecto o progresso humano, por muito imperfeita que essa concepção agora se nos revele, enquanto o nacional-socialismo era, por força da sua própria natureza, um instrumento para o progresso de um povo em particular”, visando a “construção de uma nova ordem europeia baseada na hierarquia racial e na superioridade cultural da Europa germânica”.

Por outro lado, pode dizer-se que o comunismo soviético foi mais insidioso: enquanto Hitler explanou abertamente os seus sinistros desígnios logo desde o princípio da sua carreira política (ou, pelo menos, desde a publicação de Mein Kampf), o regime stalinista instaurava a repressão e o Gulag ao mesmo tempo que continuava a prometer “amanhãs que cantam” e a publicitar esplêndidos triunfos e progressos civilizacionais, de forma que conseguiu convencer muitos comunistas não-soviéticos de que na URSS se estava a construir uma formidável utopia.

O comboio vai, a todo o vapor, do socialismo para o comunismo, com Stalin aos comandos da locomotiva: Cartaz soviético de 1939

Um balanço

Os Ditadores oferece uma exaustiva análise comparativa entre os regimes nazi e stalinista, apoiada num laborioso trabalho de pesquisa e é uma obra fundamental para compreender a natureza de ambos os regimes. Só dois pontos merecem reservas:

1) O relato da juventude de Hitler em Viena contém imprecisões e omissões no trecho em que se afirma que “contrariamente ao que mais tarde viria a dizer, [Hitler] não vivia na pobreza, pois recebera uma herança muito razoável, e além disso vendia os seus quadros, na maioria paisagens, que eram exibidas nas galerias locais”. Hitler recebeu com efeito uma herança e além disso extorquiu mais algum dinheiro a familiares (sobretudo a tia Johanna), mas dissipou tudo isso em pouco tempo pois nunca teve qualquer emprego. Foi quando se viu sem dinheiro que, com a ajuda de um amigo cheio de expedientes, começou a pintar aguarelas, muitas das quais eram cópias de imagens de calendários e postais. Eram obras banais e, na sua maioria, rápida e sofrivelmente executadas, destinadas a compradores pouco exigentes e não sendo reconhecidas como “arte” pelo meio artístico, nem tendo sido expostas em galerias. As vendas destas aguarelas não bastaram para impedir a situação financeira de Hitler de se deteriorar a ponto de ter passado a viver num asilo para sem-abrigo – Hitler viveu efectivamente na pobreza, embora tal situação tenha sido sobretudo culpa sua (ver Mein Kampf: Quem tem medo deste best-seller?).

Igreja de S. Pedro, Viena: pintura atribuída a Hitler

2) Quando da invasão da URSS pela Alemanha, em 1941, Overy apresenta Stalin como nunca tendo perdido o controlo da situação, embora, claro, tivesse sido surpreendido pela invasão, cujos indícios claros e múltiplos negara repetida e veementemente. Escreve Overy que “temos hoje provas de que Stalin esteve sempre a trabalhar” nos primeiros dias do avanço imparável da Operação Barbarossa e das sucessivos derrotas do Exército Vermelho e que não sucumbiu perante os acontecimentos. Isso foi verdade até ao dia 29 de Junho, altura em que, de acordo com a biografia de referência de Stalin por Robert Service, começou a ter um comportamento errático. Ficou desorientado quando Timoshenko e Zhukov lhe fizeram ver a verdadeira extensão do descalabro das forças soviéticas; refugiou-se na sua dacha em Blizhnyaya, mas deu instruções ao pessoal para dizer que não estava lá; as horas iam passando e a desorientação instalava-se na cúpula soviética, que se habituara a ter de obter o assentimento de Stalin para tudo; quando os seus subordinados reuniram coragem suficiente para ir a Blizhnyaya, encontraram-no abatido, sentado numa poltrona; a sua reacção foi perguntar, “porque vieram?”, o que levou um dos membros da “delegação”, Mikoyan, a crer que Stalin julgava que tinham vindo para o prender e destituir do cargo; só a custo percebeu que lhe pediam que assumisse o comando do Comité de Estado para a Defesa, readquirindo, então, a postura e disposição de espírito usuais.

[Discurso de Stalin a 7 de Novembro de 1941, apelando à resistência a todo o custo contra o invasor nazi, que estava às portas de Moscovo]

https://youtu.be/8IGbjPqFFvA

Porém, estas reservas dizem respeito a detalhes biográficos e não beliscam em nada as análises e considerações feitas por Overy sobre a natureza dos dois regimes e sobre as personalidades dos homens que os lideraram. O principal rombo na credibilidade do livro vem de outro lado: o editor português decidiu suprimir a trintena de páginas do índice remissivo, o que sendo sempre imperdoável, é-o mais ainda numa densa obra com quase 800 páginas de texto (mais 150 de notas e bibliografia) e por onde desfilam centenas de figuras, organizações e instituições.

Correção: o livro “Os Ditadores” foi publicado em português pela primeira vez em 2005; este artigo diz respeito a uma nova reedição.