E assim arrancou o novo ciclo político, que Marcelo Rebelo de Sousa vaticinou em maio. O Presidente da República previu que acabava nas autárquicas a primeira fase da era da “geringonça”, talvez só não imaginasse que o PSD ou o PCP acabassem tão mal, ou que CDS e o PS começassem tão bem a nova fase. O PSD está em choque, com esta tragédia eleitoral nunca vista e resultados muito piores do que as piores expectativas, que abrem mais uma guerra fratricida pela liderança — resta saber se Passos ainda vai à luta, embora tudo indique que não. O PCP perde para o PS uma dezena de câmaras imperdíveis, grandes e emblemáticas como Almada ou Barreiro, e pode começar a questionar as vantagens de permanecer no arco do apoio parlamentar ao PS. António Costa obteve este domingo a primeira vitória eleitoral da sua liderança, que lhe permite ambicionar uma maioria absoluta, que retiraria uma parte da influência política ao próprio Marcelo (e às esquerdas). Mas Fernando Medina deixou fugir a maioria em Lisboa. E o CDS abre uma nova realidade à direita, com um resultado histórico de Assunção Cristas na capital, à frente do PSD, e com seis câmaras no resto do país.
Esta foi a noite em que o Diabo andou solta vestido de vermelho e de laranja. Mais do que a vitória de Fernando Medina em Lisboa, e mais do que a maioria absoluta de Rui Moreira no Porto, as autárquicas de 2017 vão ficar para a história pelo descalabro do PSD e pelo trambolhão do PCP.
O PS conquistou 157 câmaras, o PSD conseguiu 95 (incluindo 18 em coligação com o CDS), a CDU manteve 24 autarquias e o CDS arrebatou seis. O Bloco continua fora das presidências de câmara e não conseguiu recuperar a única que já teve. Em termos de votação total nacional (que não pode ser extrapolada para legislativas), o PS teve 38% dos votos para as câmaras, o PSD obteve 25% (incluindo as coligações com o CDS), o CDS teve 11,7% (incluindo as coligações com o PSD), a CDU recebeu 9,5% dos votos e o Bloco 3,3%.
Uma noite diabólica no PSD condenado à irrelevância em Lisboa e Porto
Pedro Passos Coelho tanto foi acusado de invocar os demónios, que acabou assombrado com a maior derrota eleitoral de sempre do seu partido em eleições locais. A noite de 1 de outubro representa o maior pesadelo social-democrata em muitos anos. O desastre já se esperava, tendo em conta as sondagens e o desempenho na campanha dos candidatos que foram escolhas pessoais do líder do PSD: Teresa Leal Coelho teve teve 11,2% em Lisboa e Álvaro Almeida apenas conseguiu 10,4% no Porto. São dois resultados humilhantes que tornam o partido uma força exígua em cidades que governou muitos anos. Pior: Assunção Cristas e o CDS tiveram quase o dobro dos votos do PSD na capital: 52 mil votos para os centristas e 28 mil para os sociais-democratas.
Enquanto Teresa Leal Coelho assumia que o resultados eram “exclusivamente da responsabilidade da equipa que apresentou o programa”, nas televisões desfilavam os barões do PSD a pedir a cabeça do líder. “Estou atónita e chocada, estes resultados são demasiadamente maus”, dizia Manuela Ferreira Leite, servindo a Passos uma vingança em prato frio, acrescentando que o líder não tinha condições para se manter à frente do partido. Marques Mendes dava a entender que o melhor que Passos fazia era sair: “Se Passos não o fizer, a vida dele vai ser um inferno e vai ter muitas dificuldades numas diretas”, afirmou na SIC. Pedro Santana Lopes, co-responsável pelo resultado por ter ameaçado avançar e depois recuado, deixando o PSD meses a desesperar, considerou que era “uma desilusão eleitoral muito significativa”. Quanto a Rui Rio ou aos generais das suas tropas, nada. Todos em silêncio. Para já.
Medina ganha sem maioria. Lisboa à beira de uma “geringonça”
O ex-ministro Nuno Morais Sarmento, que está a trabalhar para lançar Rui Rio, tinha dito na Renascença esta semana que Passos tinha de prestar contas sobre o partido que recebeu e o partido que entregava. Em 2010, Passos Coelho herdou o PSD com 139 câmaras conquistadas nas eleições de 2009; depois, em 2013, deixou escapar mais de 30 autarquias e os municípios laranja caíram para 106 câmaras; agora, os sociais-democratas têm 95 câmaras, incluindo as que governam em coligação com o CDS. A verdade é que o PSD encolheu 44 câmaras em sete anos, não reconquistou nenhuma capital de distrito este domingo e perdeu influência nas zonas urbanas.
O discurso mais esperado da noite era o do ex-primeiro-ministro que ganhara as legislativas de 2015 contra todas as expectativas e já tinha dito que que não se ia “pôr ao fresco”. Mas, perante estes resultados, ficava ou saía? Nem uma coisa nem outra. Pedro Passos Coelho fez saber que não pode deixar de “assumir responsabilidade pelo resultado alcançado”, embora não tenha explicado o que estas palavras queriam dizer. Até porque não se demite. Passos fica até acabar o mandato, até que saia um líder das eleições diretas — que até poderá ser ele próprio. Sim: Passos Coelho lançou um tabu, que pode demorar uns dias, mas que enquanto durar vai condicionar todos os potenciais adversários como Rui Rio ou Paulo Rangel ou potenciais herdeiros da sua linha no partido, como Luís Montenegro: só depois de uma “avaliação mais aprofundada dos resultados” e depois e falar com a sua comissão política e outras pessoas do PSD, o ex-primeiro-ministro decidirá se vai a jogo ou se deixa o ringue livre para novos protagonistas: “Manterei a minha reflexão sobre as condições em que poderei colocar-me e novo em disputa interna no PSD para um próximo mandato”, afirmou. Passos foi equívoco. Não deitou a toalha ao chão. Pelo menos para já.
PS. A “maior vitória de sempre” provoca derrocada em nove câmaras da CDU
Se Passos começou o discurso na São Caetano a assumir “os piores resultados de sempre do PSD”, António Costa, no Largo do Rato, falou ao país em júbilo: “O PS teve hoje a maior vitória eleitoral de toda a sua história”. António José Seguro já tinha alcançado um bom resultado, em 2013, com 149 câmaras. Agora, a liderança de Costa somava 157, incluindo Almada ou Barreiro “roubados” ao PCP. Os socialistas mantinham Lisboa, embora com o sabor amargo de Fernando Medina ter perdido a maioria que herdara de António Costa. Mas como o resultado só se soube muito tarde não contaminou os discursos vitoriosos. Com menos três vereadores (de 11 para oito) e a entrada do Bloco de Esquerda na vereação, resta saber que tipo de “geringonça” local vai ser gerada por Medina.
O primeiro-ministro procurou por tudo segurar a “geringonça” parlamentar e fazer tiro aos sociais-democratas. “Há um claro derrotado nestas eleições, o PSD”, apontou. Ao mesmo tempo que atacava a direita — para não desunir a esquerda — o secretário-geral socialista disse aquilo que nem sequer Jerónimo de Sousa se atreveu pronunciar: “A vitória do PS não é a derrota de nenhum dos seus parceiros parlamentares”. Mas era. E era tão evidente que a frase de Costa foi exatamente o contrário do que o Partido Comunista tinha admitido minutos antes: uma enorme derrota às mãos do PS.
Quando Jerónimo de Sousa apareceu nas televisões com má cara, já tinha noção de que o PS tinha ganho terreno em muitos bastiões comunistas: “A perda de presidências de Câmara — que pode atingir as nove ou dez — é sobretudo uma perda para as populações que não demorarão a perceber o quão errada foi essa opção”, assumiu o secretário-geral do PCP, que no seu discurso nem sequer tentou iludir a derrota. Muito antes de a campanha ter ido para a estrada, comunistas e socialistas chegaram a desmentir a existência de um pacto de não agressão nas zonas onde iam disputar municípios. “Não há pacto nem agressão”, chegou a dizer Jerónimo. Mas se não houve pacto, houve agressão: no discurso duro de Jerónimo de Sousa em relação ao PS ao longo da campanha, e mesmo assim não conseguiu segurar os resultados. No caso de António Costa foi mais subtil: nunca agrediu o parceiro com palavras, nunca criticou um autarca comunista mesmo em comícios nas terras mais vermelhas, mas foi agressivo naquilo que contava: o PS conquistou Alcochete por 190 votos, Almada por 213 e o Barreiro por 1.465 votos, e ainda Barrancos, Castro Verde, Moura, Alandroal ou Constância. Peniche foi para um independente.
Almada, Barreiro e Beja são os pontos altos da hecatombe eleitoral da CDU
A perda de um terço das câmaras comunistas e a redução de 34 para 24 autarquias também deixa o PCP em estado reflexão: valerá a pena continuar a segurar um Governo do PS se forem os socialistas a capitalizar com a “geringonça”? A questão para o PCP pode ser esta: se o voto mais fiel na CDU se verifica nas autárquicas, este desgaste pode significar uma desmobilização maior ainda do voto nas legislativas? É um bom tema para o PCP pensar no mês em que comemoram os 100 anos da Revolução Russa. Junto a este descalabro, estará Jerónimo de Sousa de pedra e cal até ao próximo congresso? Os sinais do estado de espírito do PCP podem sentir-se nas próximas duas semanas durante as negociações do orçamento do Estado para 2018.
CDS entra no “arco da votação” do eleitorado mais ao centro
Enquanto o PSD punha sal nas feridas e o PCP antecipava o futuro arrependimento dos eleitores, havia uma mulher radiante: a líder do CDS. Assunção Cristas meteu a cabeça no cepo ao candidatar-se a Lisboa, fez uma campanha forte e com poucos erros, arriscou a consolidação da sua liderança no difícil mercado eleitoral da capital e teve o melhor resultado de sempre dos democratas-cristãos em Lisboa — que tinha sido em 1976, com 20,6% e quatro vereadores. Mais do que isso: pulverizou e triplicou o score de 7% de Paulo Portas em 2001. O partido parte agora para uma nova fase. O ciclo do portismo fecha-se com este resultado. Manteve-se, porém, uma lei imutável: o CDS tem sempre resultados acima das sondagens, mas, neste caso, foi a primeira vez em que as sondagens foram verdadeiramente positivas para o partido mais à direita do hemiciclo.
Assunção Cristas beneficiou da falta de comparência do PSD, mas soube capitalizar o voto da parte da direita que ficou órfã. Ainda ganhou uma sexta câmara — Oliveira do Bairro — que adicionou ao “penta” que Paulo Portas tinha contado ao mostrar nas televisões os dedos todos de uma mão, em 2103. Uma vitória em toda a linha: o CDS está no executivo do Porto, por dentro da maioria de Rui Moreira, e é a segunda força em Lisboa. O desafio de Cristas agora é conseguir fazer no país o que fez na capital: sair do seu nicho de mercado para entrar no “arco da votação” mais ao centro e levar os laranjinhas e os “descontentes com a esquerda” — como Portas chegou a sugerir na sua aparição durante a campanha — a colocarem a cruzinha no CDS.
Quanto ao Bloco de Esquerda, continua sem se conseguir impor no plano local, apesar de ter melhorado os resultados, que Catarina Martins classificou como “modestos”. A eleição em Lisboa de Ricardo Robles como vereador pode ser um fator decisivo na viabilização do executivo de Fernando Medina.
No Porto, afinal o divórcio com o PS satisfez as ambições de Rui Moreira, que conseguiu chegar sozinho à maioria absoluta, com 44,5% e oito vereadores (os movimentos independentes conquistaram 17 câmaras). As sondagens que davam o socialista Manuel Pizarro a discutir a vitória foram manifestamente exageradas. O problema de governabilidade da câmara portuense fica assim resolvido. Do lado do PS, Pizarro conseguiu passar de 22% para 28%, mas resta saber se o PS do Porto lhe vai perdoar a estratégia que desenvolveu desde 2013. Resta saber se a luta prosseguirá na federação distrital dos socialistas.
De resto, as surpresas foram poucas. Em Oeiras, Isaltino Morais arrasou a concorrência, com 41,6% dos votos e a maioria dos vereadores. Em Loures, a CDU voltou ganhar com PS por perto e o polémico André Ventura, do PSD, na casa dos 21% — um resultado melhorado em quatro pontos percentuais e mais um vereador. Em Odivelas, o social-democrata Fernando Seara foi derrotado, assim como Marco Almeida em Sinta. Ambas as câmaras permaneceram nas mãos do PS.