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Experiência na Organização das Nações Unidas (ONU), competência nas suas funções e currículo em cargos de responsabilidade não chega para se ser secretário-geral da ONU. Na complexa equação que visa a escolha do sucessor do sul-coreano Ban Ki-moon já em 2016, a nacionalidade e o género têm também um papel fundamental. O candidato ideal será da Europa de Leste e mulher, dois requisitos que o português António Guterres não cumpre e que o podem excluir à partida desta disputa.
Soube-se oficialmente esta segunda-feira que António Guterres vai prolongar o seu mandato como Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados até ao final de 2015, numa altura em que há mais de 50 milhões de refugiados um pouco por todo o mundo, nomeadamente, em regiões como Síria, Iraque, mas também Nigéria devido às investidas do grupo terrorista Boko Haram e na Ucrânia, onde as pessoas fogem de regiões onde os conflitos continuam com intensidade como a cidade de Donetsk. O seu mandato terminaria em maio e ainda não está fora de questão que continue por mais cinco anos, embora esse feito seja inédito entre as pessoas que já ocuparam este cargo, mas a ideia de António Guterres poder vir a secretário-geral da ONU está cada vez mais longe.
Mesmo com um possível apoio do Governo português, a próxima eleição para este cargo não foi talhada para o antigo primeiro-ministro. Respeitando a rotatividade do cargo, o posto deverá ser preenchido por alguém proveniente da Europa de Leste – a organização divide o mundo em cinco grupos regionais e Portugal faz parte da Europa Ocidental e outros países como Canadá, Austrália, Nova Zelândia, Estados Unidos, Israel e Turquia -, que ao contrário dos outros grupos ainda não teve ninguém nesse cargo de topo, e preferencialmente por uma mulher, já que desde a sua formação, todos os líderes foram homens.
O cargo apenas sobraria para os outros grupos regionais caso não houvesse nomes consensuais dentro da Europa de Leste que pusessem os cinco países com assento permanente no Conselho de Segurança em acordo. Apesar de em todas as eleições surgirem vários nomes, é no Conselho de Segurança, e através do voto dos países com assento permanente – China, França, Rússia, Reino Unido e Estados Unidos da América – que o nome final é apurado e apresentado à Assembleia Geral da ONU que reúne todos os Estados-membros uma vez por ano em Nova Iorque. Todos os países com assento permanente no Conselho de Segurança têm direito de veto sobre o nome de candidatos com os quais não concordem.
Segundo Thomas G. Weiss, professor da City University of New York e um dos maiores especialistas mundiais no sistema das Nações Unidas, disse ao Observador, António Guterres possui “competências intelectuais e de gestão” com provas “demonstradas” que fazem parte do perfil desejável para o próximo secretário-geral da ONU. No entanto, e a mais de ano e meio desta escolha, vários candidatos que cumprem os requisitos já se perfilam no horizonte, iniciando esforços diplomáticos e pré-campanhas de recolha de apoios. Uma batalha em que, para já, o Governo português não está empenhado pois o próprio ainda não comunicou ao Executivo a vontade para se candidatar ao primeiro cargo na ONU, pedindo, assim, que diligências diplomáticas para angariar votos dos países no Conselho de Segurança.
Alinham-se candidatos de peso no Leste da Europa
Para entrar nesta corrida e bater-se contra os potenciais rivais, o jornalista da revista Foreign Policy, Colum Lynch – especializado nas Nações Unidas e que acompanha a organização em permanência em Nova Iorque -, considera que Guterres terá uma “batalha trabalhosa”, segundo relatou ao Observador. “Penso que os países da Europa de Leste vão ter a primeira oportunidade para apresentar os seus candidatos porque nunca tiveram essa posição. Apenas se houver um impasse é que os outros vão ter oportunidade de concorrer por este cargo. E mesmo aí, é preciso saber se o próximo secretário-geral virá do Ocidente”, disse Lynch.
Entre os nomes apontados no bloco dos países de Leste que inclui também a Rússia, estão as búlgaras Irina Bokova e Kristalina Georgieva, os eslovacos Miroslav Lajcak e Jan Kubis, ou o esloveno Danilo Turk. Fora deste grupo regional, posiciona-se a neozelandesa Helen Clark e ainda a queniana Amina J. Mohammed.
A vantagem de alguns destes candidatos é que já têm o apoio dos seus governos, mostrando que estão no terreno em busca de apoios. Uma das candidaturas mais sólidas é a de Irina Bokova, atual diretora-geral da UNESCO – uma agência especializada da ONU que lida com a Educação, Cultura e Ciência. Diplomata de carreira, a búlgara de 62 anos estudou na União Soviética e nos Estados Unidos, fala fluentemente francês, inglês, espanhol e russo e integrou os esforços do país para integrar a União Europeia desde os anos 90. Chegou à UNESCO em 2009, sendo reeleita em 2013 para mais um mandato. Os seus anos à frente da organização têm sido elogiados pelas reformas implementadas e cortes nos gastos. Em janeiro de 2015, o governo búlgaro declarou publicamente o apoio a Bokova para a liderança da ONU.
Outra búlgara pronta a entrar na corrida é Kristalina Georgieva, atual comissária europeia do Orçamento e Recursos Humanos e antiga líder do Banco Mundial, e é referida pelo Expresso como a principal adversária de Guterres. No entanto, o seu mandato começou há pouco tempo e perante o apoio formal do seu governo. As duas candidatas búlgaras seriam bem aceites tanto pelo Ocidente como pela Rússia, garantindo assim a aprovação do Conselho de Segurança, sem veto de nenhuma das partes.
“Estou a pensar nessa opção e caso o meu governo me apoie, gostava de ser considerado para esse lugar”, diz Kubis.
Os eslovacos Miroslav Lajcak e Jan Kubis estão também na corrida para a sucessão de Ki-moon. Kubis é atualmente o representante de topo da ONU no Afeganistão, um dos cenários mais perigosos onde a organização tem vindo a cumprir missões. Tem 62 anos, foi secretário-geral da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) e ministro dos Negócios Estrangeiros do seu país entre 2006 e 2009. É muito próximo do atual secretário-geral. À revista The Economist, Kubis disse mesmo em maio de 2014: “Estou a pensar nessa opção e caso o meu Governo me apoie, gostava de ser considerado para esse lugar”.
Miroslav Lajčák é um dos potenciais candidatos mais novos e com 51 anos é atualmente o ministro dos Negócios Estrangeiros da Eslováquia. É diplomata de carreira e, entre 2010 e 2012, dirigiu a política de vizinhança da União Europeia com a Rússia, países de Leste e países dos Balcãs. O Governo da Eslováquia ainda não se pronunciou sobre qualquer apoio a um candidato.
Da Eslovénia e já com o apoio do seu Governo, surge Danilo Turk, antigo Presidente do país. Entre 2000 e 2005, foi assessor do então secretário-geral da ONU, Kofi Annan, para os Assuntos Políticos, sendo eleito Presidente da Eslovénia em 2007 e terminando o seu mandato em 2012. O atual Governo esloveno já garantiu que vai dar “o apoio adequado” à candidatura de Turk.
“A Europa de Leste está ativa, há vários nomes de países diferentes, com as diplomacias a funcionar. Uma dessas candidaturas vai ser bem-sucedida”, considera o antigo eurodeputado Mário David. Por esta razão, e por considerar que a ONU “tem as suas regras”, o ex-eurodeputado e ex-secretário de Estado dos Assuntos Europeus olha para a possibilidade da candidatura de Guterres como “um pouco delírio” e muito motivada pela corrida às presidenciais que acontece internamente em Portugal.
Dar o exemplo. Uma mulher no topo da ONU
Já em 2005, aquando da escolha de Ban Ki-moon, várias organizações internacionais pediam que o candidato escolhido pelo Conselho de Segurança fosse uma mulher. Agora, 10 anos depois e com cada vez mais mulheres em lugares destacados dentro da ONU e com a forte aposta da organização na promoção do papel da mulher na política e no combate às desigualdade entre géneros – que está a cargo da UN Women dentro da ONU, mas percorre um pouco todas as agências da organização -, é cada vez mais difícil adiar a escolha de uma candidata. Especialmente quando, segundo Mário David, há pelo menos duas candidatas – Bokova e Georgieva – que cumprem “todos os requisitos”.
Thomas G. Weiss, considera que se as coisas fossem feitas na base da igualdade, “claro que seria uma mulher”, mas alega que isso “raramente acontece”. Desde que a candidata tenha uma “linha de ação independente” e “esteja disposta a contrariar os Estados-membros” a favor do bem comum, Weiss considera que será bem sucedida. Característica que o professor não encontra em Ban Ki-moon “cuja única definição de sucesso é que nenhum Estado esteja infeliz com a ação da ONU”, relatou ao Observador.
“Se houver apoio suficiente ao meu tipo de liderança, seria algo interessante”, refere Helen Clark.
Apesar da longa lista de candidatos qualificados provenientes da Europa de Leste, há outras candidatas mencionadas como possíveis indicações, caso o Conselho de Segurança não chegue a um consenso sobre os nomes já referidos. Uma delas é Helen Clark. O The Guardian há um ano perguntava se Clark, antiga primeira-ministra da Nova Zelândia e atual diretora do programa de Desenvolvimento da ONU – o que a coloca em terceiro lugar na hierarquia de toda a ONU -, seria a primeira mulher a liderar a organização. A neozelandesa disse ao jornal britânico: “Vai ser interessante ver se vamos ter uma mulher, já que a ONU parece um dos últimos bastiões a ser conquistado […] Se houver apoio suficiente ao meu tipo de liderança, seria algo interessante”.
Outra mulher na corrida é a queniana Amina Mohammed, que é atualmente conselheira especial de Ban Ki-moon para a agenda pós-2015 sobre os novos objetivos do Milénio que visam o desenvolvimento global a vários níveis.
O jornalista Colum Lynch considera que há “uma grande pressão” sob a ONU para que um dos requisitos a preencher seja o género e que há “um impulso”, gerado por ONG e lóbis, a crescer que pretende que o cargo seja ocupado por uma mulher. “Acho que há uma grande hipótese de uma mulher ser nomeada, desde que venha da região certa do mundo”, conclui Lynch em declarações ao Observador. Um tema que explora no seu artigo sobre os possíveis candidatos a líder da ONU, escrito em novembro do ano passado.
Um novo método para a eleição do secretário-geral? Talvez não em 2016
Devido ao âmbito limitado e pouco transparente das votações que ocorrem no Conselho de Segurança para a eleição do candidato a secretário-geral que é posteriormente recomendado à Assembleia-Geral – há várias votações não oficiais, consoante o número de candidatos, até sobrar apenas uma pessoa consensual entre os países com direito de veto -, há uma iniciativa global de várias organizações não-governamentais (ONG) que visa pedir a alteração deste processo. A 1 for 7 Billion, que se constituiu para este propósito, já reúne o apoio de mais de 50 ONG que lidam de alguma forma com a ONU e pede um processo “mais inclusivo e aberto” na seleção do secretário-geral.
Em vez de um processo que se desenrola nos bastidores e corredores da sede da ONU em Nova Iorque e e fóruns mundiais como G20 ou Davos e culminam na eleição pela Assembleia Geral, esta iniciativa quer:
1. Que o cargo de secretário-geral seja anunciado publicamente e que tanto Estados-membros como a sociedade civil possam nomear candidatos – independentemente da sua proveniência -, mediante uma lista formal de requisitos a publicar pela ONU.
2. A ONU deveria então publicar uma lista final com os candidatos aprovados mediante o seu currículo e avaliação da sua capacidade de exercer o cargo. Este processo seria partilhado entre o presidente do Conselho de Segurança e o presidente da Assembleia Geral.
3. Todos os candidatos deveriam apresentar as suas medidas e objetivos como secretário-geral da ONU e quando a lista final estivesse fechada, a própria ONU deveria promover sessões abertas em que o candidato seria confrontado com questões dos jornalistas e do público em geral.
4. O Conselho de Segurança escolheria entre os candidatos duas ou mais pessoas para serem votadas na Assembleia Geral por todos os Estados-membros.
A proposta diz ainda que o mandato do secretário-geral deveria ser de sete anos, sem a possibilidade de renovação. Neste momento, a eleição do secretário-geral não impede estas alterações, já que a Carta das Nações Unidas apenas aponta que o candidato deve ser indicado pelo Conselho de Segurança e nem estabelece um limite temporal que entretanto se estabeleceu como cinco anos – artigo 97 da Carta das Nações Unidas.
Ao Observador, fonte oficial da organização 1 for 7 Billion disse que estas sugestões “já surgiram no passado” vindas de Estados-membros e, embora não possa falar para já nos apoios a nível nacional sobre esta proposta, garante que “está confiante que nos próximos meses vão surgir muitos países a patrocinarem esta iniciativa”.
Para Thomas G. Weiss, é “óbvio” que o processo de seleção tem de mudar, tal como Conselho de Segurança tem de ser reformado – embora reconheça que os cinco países com assento neste órgão “não estão prontos para abandonar os seus privilégios”. O professor é autor do manual sobre as Nações Unidas editado em 2009 pela Universidade de Oxford e tem escrito sobre o perfil necessário para o próximo líder da organização, e considera que da proposta do 1 for 7 Billion deve ser considerado, pelo menos, o prolongamento do mandato, que permitiria ao secretário-geral ser “mais independente e capaz de correr riscos”. “Pelo menos, os candidatos deviam ser obrigados a dizer com antecedência o que acham sobre o atual sistema da ONU e a sua organização feudal, o que acham sobre os recursos humanos da organização e ainda quem é que estão a pensar nomear para os principais cargos de responsabilidade”, afirmou o académico ao Observador.
No entanto, Mário David relembra que estas organizações não-governamentais “não votam” na ONU e que o calendário está cada vez mais apertado para qualquer alteração de grande envergadura neste processo que já está em andamento, dado que a votação final deverá acontecer na 71ª Assembleia Geral, que acontecerá em setembro de 2016.