“João: Olha lá, queres ir àquele novo restaurante que abriu na bica? Dizem que é ‘muita’ bom.
Hugo: Estás louco, meu? Não viste as notícias? Não sabes o que é que se está a passar na Ucrânia?
João: Tens razão. Não sei em que é que estava a pensar. É melhor não gastar dinheiro.”
O dialogo é fictício. Saiu da imaginação do escritor Tiago R. Santos, autor de A Velocidade dos Objectos Metálicos, enquanto lia a proposta de Orçamento do Estado (OE) para 2015, entregue no Parlamento a 15 de outubro. Nesse dia, o Observador enviou-lhe o documento original e pediu-lhe que fizesse uma análise literária às 278 páginas – ou parte delas -, que podem ditar as decisões dos portugueses no próximo ano. E não foi o único. Ao desafio, responderam mais dois escritores contemporâneos: Pedro Vieira e Bruno Vieira Amaral. Com direito a ilustração e alusão a filmes. Afinal, se o Orçamento do Estado fosse um livro, qual seria? E se fosse uma personagem, quem escolheriam? Neste artigo, a imaginação falou mais alto do que os factos. Porque no que toca a gerir contas, a criatividade também ajuda.
O diálogo entre as personagens fictícias João e Hugo surgiu a propósito dos “riscos geopolíticos” e de como “parecem ter contribuído para a deterioração da confiança das empresas e dos consumidores na área do Euro”, seguido de uma breve confissão: “Eu, como consumidor, confesso que nunca deixei de frequentar serviços ou contribuir para a economia por causa de riscos geopolíticos. É mais porque não tenho mesmo dinheiro e porque, do pouco que vou recebendo, o IRS e a Segurança Social ficam com a sua parte porque, caso contrário, ‘vais ter sérios problemas’, uma afirmação apenas adequada a mafiosos e aparelhos de Estado. Mas, se calhar, estão a referir-se só às empresas”, escreveu Tiago R. Santos, que, revela, não leu o documento todo. Só conseguiu ir até à página 13.
Depois, deu um salto à “curtíssima” parte sobre a cultura, “só para ter a certeza que continua a haver zero investimento na área do Cinema”, revelando que “isto é das coisas mais aborrecidas e deprimentes que já alguma vez li”. Pela cabeça, passaram-lhe várias imagens. Lembrou-se daquela vez em que esteve duas horas à espera, no consultório do dentista, com o canal de televisão VH1 e umas quantas revistas cor de rosa como companhia. O momento, recorda-o como aquele “período em que a vida se suspende em completo tédio como se te procurasse anestesiar para o que se segue: o terror do carniceiro que te escava os dentes com uma broca metálica”. E acrescenta que, para as políticas financeiras do Governo, o cenário ainda é pior, porque nem sequer há anestesia.
Sobre a qualidade do texto, diz que nem sequer é escrito para ser compreendido pelo cidadão comum, mas supõe – como quem sabe – que é algo intencional. “Assim, evitam que a população saia para as ruas com tochas e forquilhas à procura dos monstros que mantêm todos acordados à noite”, escreve. Mas deixa a nota: na sua ‘não licenciatura’ em Comunicação Social, a única cadeira que não completou foi precisamente Economia. Numa escala de zero a 20 valores, Tiago R. Santos teve cinco. E irrita-se. Afinal, além de aborrecido, o OE mexe com os nervos dos leitores. “A irritação foi outro dos efeitos que o Orçamento do Estado para 2015 teve em mim nesta manhã de quinta-feira.”
Quanto a gralhas, detetou uma, na página quatro: um ‘n a’, em vez de ‘na’. “Acho que isso se pode perdoar. É, talvez, a única coisa perdoável”, diz o escritor. A utilização da palavra ‘concomitantemente’, no lugar de ‘simultaneamente’ é que já não tem perdão possível. Pelo contrário, “é lamentável”. “Tanta conversa sobre austeridade e depois a pessoa que escreve isto usa palavras tão caras sem necessidade nenhuma. Até parece que não sabe como é que estão as coisas na Ucrânia”, remata.
E se o Orçamento do Estado fosse uma obra literária, seria o quê? Uma comédia, responde Tiago R. Santos, que também escreveu o argumento de Call Girl, vencedor de um Globo de Ouro, ou do recente Os Gatos Não Têm Vertigens, realizado por António Pedro Vasconcelos. Ou então não. Também podia tornar-se “num daqueles livros malditos, um mito urbano, e quem o encontrasse numa cave escura e o lesse seria possuído por um demónio ou libertaria as forças das trevas”, explica.
Melhor ainda, se o Orçamento do Estado para 2015 fosse uma obra literária, seria um romance de Kurt Vonnegut, norte-americano que escreveu romances como Um Homem sem Pátria, Galápagos ou A Cruzada das Crianças. “Aí, dá para transformar todo este espetáculo burocrático e impenetrável e deprimente numa espécie de experiência sociológica conduzida por extraterrestres que nos observam de outra galáxia”, escreveu.
As referências a Vonnegut não se ficam por aqui. No Orçamento do Estado, a personagem principal é Tahsdisfhrwou, “o imperador intergaláctico que, para distrair a sua própria população do facto de que há escassez do seu alimento preferido – gatos, numa pequena homenagem a Alf, porque não? -, colocou uma série de robots/marionetes em posições de poder no planeta Terra, testando assim os limites e a capacidade de sofrimento dos terráqueos”.
E a divagação continua: é que os súbditos de Tahsdisfhrwou gostaram tanto do programa, que dizem: pode até nem haver gatos para comer, mas pelo menos ninguém os obriga a fazer pagamentos por conta ao IRS, quando toda a sua vida profissional será passada a recibos verdes. E, na imaginação de Tiago R. Santos, os súbditos prosseguem: “Que disparate, até nós, que temos a capacidade de omnipresença (que eles têm, o que é ótimo, porque nunca chegam atrasados a lado nenhum), não conseguiríamos dar aulas em 74 escolas ao mesmo tempo”. Quem é que ainda está a pensar nos gatos?
O título já foi escolhido por Vonnegut e seria Welcome to the Monkey House – Bem-vindos à Casa dos Macacos, em tradução livre -, mas Tiago R. Santos sugere outro, As Marionetes, no qual Pedro Passos Coelho, “um dessas robots/marionetas”, avaria em plena Assembleia da República, repetindo a palavra “impostos”, vezes sem conta. Nesta fase, os terráqueos descobrem o que se está a passar, juntam-se e derrubam as marionetas.
Curioso? É que a ação não fica por aqui. Os terráqueos também querem ajustar contas com Tahsdisfhrwou e declaram aquela que vai ser conhecida como a I Guerra Intergaláctica. “Perdemos, naturalmente, naquela que ficará nos livros de História como a ‘Batalha dos 15 Segundos’: Os súbditos de Tahsdisfhrwou invadem o país e todos os gatos são comidos em menos de uma semana. “Isto não acaba bem, infelizmente”, escreve.
Pela cabeça de Tiago R. Santos, passaram-lhe imagens das aulas de economia e do filme The Ring, sobretudo, aquele momento em que as personagens colocam a cassete no leitor de VHS. “Fiquei com medo, enquanto tentava ler o Orçamento do Estado, que uma figura saísse no ecrã do meu computador e roubasse todo o dinheiro que tenho na carteira. Espera aí, vou ver. Confirma-se. Todo o dinheiro desapareceu. Esquece o Kurt Vonnegut e as guerras intergalácticas. É a outra opção, aquela do livro maldito. Quem ler o Orçamento do Estado, evocará uma entidade que entrará nas casas dos contribuintes e pensionistas e levará todo o dinheiro que encontrar”, diz.
E, no final, um apelo: “Avisem as pessoas, Observador. Alertem-nas. Também não consigo encontrar as chaves do carro e alguma comida desapareceu do frigorífico. Malditos conflitos na Ucrânia. Maldito Orçamento do Estado. Maldito Tahsdisfhrwou.”
E para a grande tela, João César Monteiro. Se o Orçamento do Estado fosse um filme, seria o negro Branca de Neve. “Tudo a negro e aplaudido apenas por alguns iluminados que acreditam que este é o caminho”, diz Tiago R. Santos.
E se fosse uma série televisiva? “The walking dead, sem dúvida”, responde Pedro Vieira, autor de Última Paragem, Massamá, distinguido com o Prémio Revelação do PEN Clube Português, e de Éramos felizes e não sabíamos, uma obra que reúne as crónicas que escreveu no blogue irmão lúcia. Porque os promotores são “mortos-vivos politicamente”, que “insistem em morder-nos os rendimentos e em espalhar a peste da austeridade”, diz. Além de escritor, Pedro Vieira é criativo no Canal Q, das Produções Fictícias e ilustrador.
Sobre o Orçamento do Estado para 2015, diz que pode “ombrear com outras grandes obras da literatura portuguesa”, mas que tem uma grande desvantagem. É que na obra entregue por Maria Luís Albuquerque ao Parlamento não existe uma versão Europa-América, tal como acontece, por exemplo, em Os Maias. Contudo, confessa: as 278 páginas de literatura orçamental nacional têm tudo para se tornarem no próximo Crime e Castigo português. “Com a graça de permitir-se mais efabulação do que o clássico do Dostoievski”, explica ao Observador. E vai mais a fundo na imaginação: na versão portuguesa da obra, o crime do Governo tem a agravante de estar a ser cometido sucessivamente e o castigo recai sobre os portugueses, nomeadamente os da classe média.
“Passos Coelho na pele de Raskolnikov? Com certeza, sobretudo quando atentamos na secção Medidas Transversais de Racionalização e Reorganização do Setor Público, vulgo machadada”, escreve Pedro Vieira, para quem a narrativa é, sem dúvida, um drama, mas também alta literatura, que, explica, não se sente diminuída por ser um pastiche da tradição russa da austeridade existencial. E confessa: “No final esperava uma narrativa de redenção, mas senti-me enganado quando percebi que só havia anexos.”
Pela cabeça de Pedro Vieira, várias imagens: um matadouro, um crucificado – “também podia ser um pensionista, às vezes, é difícil distingui-los”, explica. Ou uma estepe russa disfarçada de deserto de ideias. E não só: uns bolsos vazios e um boneco de madeira adotado por um homem chamado Gepetto. É aqui que surge a reviravolta. Se calhar, se fosse uma obra literária, o Orçamento seria um policial sueco. “Teria a mesma dose de sangue, mas o consolo de podermos contar com um estado social nórdico”, escreve.
E, por fim, a confissão: “a verdade é que não li de todo o documento que me enviou, exceção feita ao índice. Limitei-me a falar de cor, que é o que a coligação faz quando escreve um clássico como este Orçamento sem ler o país”. E lembra Immanuel Kant, para dizer que “também escreveu coisas muito certeiras sem nunca sair do mesmo citius”.
“Quem dera que me tivesse mandado a famosa pen em vez do pdf. Sempre tinha mais utilidade e, assim como assim, já ninguém acredita no Dâmaso dos submarinos”, escreve.
Com lampejos de erotismo e astrologia
Inclassificável. Daqueles livros que desafiam géneros, que resistem a qualquer tentativa de definição e a quase todas as tentativas de leitura. Se o Orçamento do Estado para 2015 fosse uma obra literária, seria assim, diz Bruno Vieira Amaral, autor de As primeiras coisas, considerado o livro do ano 2013 pela Time Out, e do Guia para 50 personagens de ficção portuguesa. E os comentários não se ficam por aqui. É que as 278 páginas do Orçamento do Estado não são inofensivas. Provocam cefaleias.
Quanto aos géneros, seria uma mistura entre o thriller e o romance feminino, passando pelo terror e pela literatura económica, “em mais do que um sentido”, que é “praticada por autores do século XIX como José Gomes Pherreira ou Camylo Lourenço”. E porque não uma obra de arte, em que cada uma das páginas é uma “homenagem sentida e comovente ao conceito de ‘consolidação’”?
A história já é conhecida, explica Bruno Vieira Amaral. “Após perder tudo o que tinha e empenhar o que não tinha, uma pequena nação do Sul da Europa procura recuperar a credibilidade junto do ramo nórdico da família. Para o conseguir, faz promessas eternas de austeridade aos mercados, um amante que exige muito e pouco lhe dá em troca. Obviamente, os mercados não confiam nas palavras desta mulher que esbanja todo o dinheiro em leite escolar e telhados de amianto. Já foram enganados muitas vezes. As declarações intempestivas de amor são logo atiradas para o lixo.”
E evoca a história de coragem, determinação e perseverança que vive no Orçamento. À qual não faltam “lampejos de erotismo e astrologia”. “Nenhuma leitora ficará indiferente à passagem em que se fala de ‘uma redução gradual dos estímulos monetários’ ou ao saber que ‘ainda não está totalmente definida a orientação da política monetária’”, escreve Bruno Vieira Amaral. Para as fãs de astrologia, um brinde. “As previsões sucedem-se a um ritmo alucinante pois não só se ‘prevê um fortalecimento’ como também se ‘prevê uma melhoria’”, explica. Pena que não diga se “o ano é bom para lançar as sementes de um novo projeto ou se devemos ter cuidado com as constipações”.
E porque não uma obra moral? “O aumento dos impostos sobre o álcool, o tabaco e o jogo online (mas poupando sintomaticamente a pornografia) mostra-nos uma mente moral em ação que não hesitará em aplicar a Sharia em 2016, se isso reforçar a consolidação orçamental”, diz Bruno Vieira Amaral, para quem o autor do relatório “é dono de uma cabeça sádica”. “Para quê matar logo o desgraçado se o pode torturar lenta e cruelmente com dolorosas perfurações fiscais?”, questiona.
Mas a responsabilidade sobre o final, essa, é do leitor e, em última análise, o Orçamento do Estado ainda pode ser um livro de autoajuda. Mas se fosse uma personagem da ficção, Bruno Vieira Amaral não tem dúvidas, seria Javert, de Os Miseráveis, o guarda que dedica a vida a combater o crime e aqueles que são considerados “criminosos”, ainda que não o sejam. Há miseráveis no Orçamento?