Um mês e meio depois do grande incêndio de Pedrógão Grande, a ministra da Administração Interna tem na mão seis documentos – entre relatórios, auditorias e pareceres jurídicos – com centenas de páginas sobre a tragédia que resultou na morte de pelo menos 64 pessoas. Os documentos trazem revelações surpreendentes: por exemplo, a entidade fiscalizadora do SIRESP não tem meios para fazer essa fiscalização e alguns dos utilizadores entrevistados pela Inspeção-geral da Administração Interna mostraram-se pouco à vontade com o sistema de comunicações. Mas não fica por aqui.
O Observador analisou as respostas que a Inspeção-geral da Administração Interna (IGAI), o Instituto de Telecomunicações, a GNR, a Autoridade Nacional de Proteção Civil (ANPC) e a sociedade de advogados Linklaters enviaram a Constança Urbano de Sousa e reuniu algumas das 22 falhas apontadas ao SIRESP, das oito críticas que as várias entidades fazem ao sistema de comunicações e à resposta dada ao incêndio e das 32 recomendações feitas com vista à melhoria do sistema.
As falhas: não existem geradores e utilizadores não dominam SIRESP
Estações não têm alternativa energética. A auditoria feita pela consultora KPMG ao SIRESP, a pedido do anterior Governo, levou a secretaria-geral do Ministério da Administração Interna (SGMAI) a elaborar um Plano de Ação que deveria ter levado à resolução das fragilidades do sistema de comunicações identificadas em 2014. Devia, mas isso não aconteceu. Pior: o plano de ação apresenta como resolvidas questões que, na verdade, nunca foram alvo de qualquer ação por parte da SGMAI, entidade que devia ser ao mesmo tempo gestora e fiscalizadora desta rede de emergência partilhada entre forças de socorro e de segurança. A IGAI refere agora que o plano de ação elaborado pela SGMAI continua a apresentar várias recomendações “que não foram concluídas”.
Uma das recomendações dessa auditoria apontava para a necessidade de as estações fixas do SIRESP serem equipadas com geradores de energia que garantissem a continuação do serviço, mesmo quando o fornecimento de eletricidade falhasse. A auditoria da IGAI revela, no entanto, que “a ação ‘disponibilização e operacionalização de geradores móveis de emergência’ inserida no plano é dada como concluída sem que existam os referidos geradores”. Na prática, uma simples falha de energia tornaria inútil uma ou várias estações base do SIRESP, limitando as comunicações na área de influência dessa estação ao chamado “modo local”, o que significava que, por exemplo, no caso de um incêndio, os operacionais no terreno poderiam de perder as comunicações SIRESP com o posto de comando.
Quando há alternativas, são demasiado frágeis. Mas mesmo nos casos em que existe uma fonte alternativa de alimentação energética, as condições são precárias. É isso que refere a primeira parte do estudo do Instituto de Telecomunicações (IT): “Em caso de corte no fornecimento de energia elétrica, [a operação] é assegurada por baterias com capacidade claramente insuficiente para uma rede de emergência”, apontam as conclusões daquele organismo no capítulo “energia”.
Os técnicos do IT, que ainda estão a trabalhar na segunda parte do estudo, não limitaram a sua avaliação às estações fixas, e acabaram por identificar mais fragilidades nas duas estações móveis que, à data, estavam disponíveis (entretanto, o ministério comprou mais duas antenas móveis para as carrinhas da ANPC). “No que respeita aos terminais móveis, em média, uma bateria não é suficiente para um dia de operações, sendo a autonomia diferente consoante o fabricante dos terminais”, lê-se no relatório. E, “embora os utilizadores levem baterias de reserva para o terreno”, rapidamente se torna necessário recarregá-las. Aí, surge outro problema: “Nem todas as viaturas dispõem de conversores 12V-220V, pelo que nesses casos as baterias têm de ser enviadas para os quartéis originando inúmeras viagens ente os quartéis e o teatro de operações”.
Bombeiros, políticas e outros utilizadores não sabem usar o SIRESP. “Ao que pudemos apurar nas entrevistas, nem todos os utilizadores têm conhecimento e prática suficiente dos equipamentos” da rede de comunicações. A conclusão é dos técnicos do Instituto de Telecomunicações e reforça uma outra conclusão, plasmada na análise da IGAI ao sistema. Em concreto, o facto de não existirem quaisquer documentos “acessíveis aos utilizadores finais” que reúnam informações sobre, por exemplo, como usar os rádios em situações de urgência. Os relatórios não especificam de que forma bombeiros, militares da GNR, elementos da PSP ou até da Proteção Civil recém-chegados às funções aprendem a operar os equipamentos que lhes são distribuídos, mas deixam clara a ausência de um modelo formal de transmissão de conhecimento. E o próprio plano de ação da SGMAI não prevê, sequer, a preparação desses manuais de utilização.
Entidade fiscalizadora, mas pouco. Neste ponto, o levantamento da IGAI é demolidor para a SGMAI. A auditoria permitiu concluir que “a eventual aplicação de penalidades” à SIRESP, SA. (consórcio de empresas ao qual foi entregue a operacionalização da rede de comunicações) “decorre da admissão de incumprimento por parte da operadora, nos relatórios anuais que apresenta”. E, independentemente da veracidade das informações que a SIRESP, SA. apresente nesses relatórios, a SGMAI não dispõe de “instrumentos que lhe permitam confirmar a informação constante nesses relatórios”. Ou seja, a entidade que devia fiscalizar as condições de funcionamento do SIRESP dependente em absoluto da informação que a própria empresa que garante a operação lhe apresenta.
Daqui decorrem uma série de falhas identificadas pela IGAI e pelo IT. Por exemplo, o facto de, ao longo de mais de 10 anos, a antiga Direção-geral de Infraestruturas e Equipamentos e a SGMAI nunca terem apurado “se o SIRESP cumpre os requisitos de redundância no subsistema de transmissão fixados no caderno de encargos e no contrato”.
Avarias por estudar, fragilidades por resolver. As 22 falhas identificadas pelas várias entidades e compiladas nos vários documentos tornados públicos pelo MAI esta quarta-feira, estão, sobretudo, concentradas nos relatórios da IGAI e do Instituto de Telecomunicações. É aí que se dá conta, ainda, da ausência de um “procedimento estruturado de análise e sistematização dos dados que permita avaliar o impacto das avarias ou incidentes” na rede SIRESP — o que leva a que as falhas registadas ao longo da última década não pudessem ser estudadas e corrigidas. A SGMAI também não desenvolveu planos para resolver os problemas de saturação de rede que se verificaram em várias situações e que resultaram da “grande concentração de utilizadores” em situações de crise.
As críticas: secretaria-geral do MAI debaixo de fogo
Um fiscalizador passivo e informal. A Inspeção-geral da Administração Interna recebeu de Constança Urbano de Sousa um caderno de encargos claro: olhar para o SIRESP e fazer um raio-x àquilo que funciona e àquilo que falha no sistema de comunicações (e o segundo ponto parece levar uma vantagem avassaladora neste campeonato). A IGAI considera que a secretaria-geral do MAI “tem resolvido problemas, deficiências e limitações do SIRESP”, mas também tem atuado “de forma pontual e reativa” perante as fragilidades detetadas. Além disso, o reporte das falhas que foram sendo identificadas não cumpre patamares mínimos de rigor. A secretaria-geral comunica à tutela os “problemas” do SIRESP, “fazendo-o informalmente, inexistindo uma formalização” ou, sequer, um “registo de comunicações realizadas”. Não há registos, logo, não haverá apuramento de responsabilidades?
Sanções leves, zero penalizações. A tarefa de dissecar o funcionamento do SIRESP não resulta numa boa fotografia para a secretaria-geral do MAI. A Inspeção-geral da Administração Interna concluiu que a entidade fiscalizadora “nunca reclamou o pagamento de qualquer multa” à SIRESP, SA, “uma vez que nunca detetou qualquer situação em que a mesma fosse contratualmente devida”. O problema, naquilo que resulta da análise da IGAI, é mais complexo que isto. Porque estará em causa a forma como o contrato entre o MAI e a empresa operadora foi celebrado e que leva a que “falhas relativamente prolongadas num número limitado de estações base, ainda que na mesma zona” acabem por ter um “valor residual, quando consideradas a nível global, não dando origem a qualquer penalização” da SIRESP, SA. Aliás, mesmo nos casos em que os parâmetros avaliados pela entidade fiscalizadora (que, já se viu, não tem meios de fiscalização) estejam “ao nível mais baixo” daquilo que o contrato prevê, “a penalização a aplicar é de apenas 8,6% do valor a receber pela operadora”. Isto é, não terá impacto nas contas da empresa.
Cadeia de comando longa e fraca cobertura. Depois do incêndio de Pedrógão Grande, a ministra Constança Urbana de Sousa acelerou a compra de duas antenas móveis, duplicando o número de carrinhas disponíveis para assegurar a comunicação SIRESP quando falham as antenas fixas. Quando a IGAI partiu para a auditoria, apenas a GNR e a PSP estavam equipadas com estes meios “redundantes”, mas já então havia um problema: “Uma cadeia de comando demasiado longa e demorada para situações de emergência”. Outra crítica apontada pelo organismo da Administração Interna tem a ver com o nível de cobertura da rede. Ainda que cumpra as “especificações do contrato”, essas condições eram, à partida, “pouco exigentes” (e foram, entretanto, reforçadas por orientação de Urbano de Sousa).
As recomendações: uma operação em curso
Propostas técnicas, operacionais e formais. A serem implementadas, as recomendações da IGAI, do IT e da Direção Nacional de Auditoria e Fiscalização da ANPC significaria uma revolução no sistema de comunicações do SIRESP. A extensa lista de alterações propostas (algumas, já aplicadas) passa por “equacionar que o coordenador do Centro e Operação e Gestão”, organismo que controla toda a operação da rede SIRESP, fique em funções “a tempo inteiro” — o que não acontecerá atualmente; também se recomenda que seja “rapidamente” resolvida a ausência de geradores de emergência para as estações fixas; reforço da cobertura de rede e capacidade de resposta do sistema; limitação dos grupos de comunicação em situações de emergência; distribuição das carrinhas móveis pelo país (e o “aumento do número de estações móveis para reforço pontual”); ponderação da utilização de ligações por satélite; dotar a SGMAI de “de meios, técnicos e de outra natureza, que lhe confiram capacidade para o exercício efetivo do poder de fiscalização que lhe está legal e contratualmente atribuído” (e que não é cumprido), entre outras.
Regras para as equipas de socorro. Sobre o caso concreto do incêndio de Pedrógão Grande, a Direção Nacional de Auditoria e Fiscalização da ANPC analisou as circunstâncias em que ocorreu o acidente que levou à morte de um bombeiro, na EN236-1. Focada nesse contexto, este organismo entende que a “composição da tripulação de determinado veículo de socorro não deveria ser permitido a existência de bombeiros com relação jurídica de parentesco ou casamento” (no caso da carrinha dos bombeiros de Castanheira de Pera, seguiam juntos um pai e um filho). A mesma direção nacional defende que o “uso dos dispositivos de retenção dos veículos” isto é, de cintos de segurança, deveria ser “uma imposição de segurança”.