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Na política, a máscara é uma constante do dia-a-dia e não está reservada apenas para o Carnaval. Há as máscaras que os políticos criam para si próprios, seja para se apresentarem perante os eleitores ou enviarem mensagens aos seus opositores, e há ainda as máscaras que lhes são atribuídas. Cavaco Silva não é político, Passos Coelho apresenta-se agora como social-democrata e António Costa transforma consensos em vitórias políticas – onde nem sempre triunfa. Usadas de livre vontade ou impostas, os disfarces abundam na vida política portuguesa e o Observador fala-lhe de algumas.

Mascaras_sepCosta

António Costa. Há vinte anos a vender consensos

Conseguiu apaziguar o PS, assinou acordos históricos com os partidos à esquerda e fez passar um orçamento no exame de Bruxelas. António Costa disse em campanha ser capaz de “construir consensos, com maiorias relativas e absolutas” e cumpriu, dando origem ao primeiro Governo em Portugal com apoio parlamentar à esquerda. Mas a máscara do homem dos consensos não é só de hoje. António Costa orgulha-se de ter sido ele a conseguir chegar a consensos com o PSD (de Marcelo Rebelo de Sousa) para aprovar os orçamentos da era António Guterres. E gosta de lembrar os inúmeros acordos que fez, à esquerda e à direita, enquanto presidente da Câmara de Lisboa. São vinte anos (desde o Governo de Guterres) a apregoar que é Costa, o construtor de consensos.

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O cognome colou-se como um disfarce ao argumentário de Costa e à sua ação política assim que terminaram as eleições legislativas. Com uma derrota no bolso, foi buscar os consensos para conseguir uma vitória. Mas os acordos com Bloco de Esquerda, PCP e PEV não garantem um apoio constante e traçam linhas claras para a definição das políticas do executivo PS nos próximos anos. E se no início a instabilidade dos acordos poderia ser atribuída ao facto de estes não implicarem solidariedade nas votações do Orçamento a priori, as suas limitações foram visíveis no orçamento retificativo, quando a esquerda não concordou com a resolução do Banif e foi a abstenção do PSD que viabilizou as contas para 2015.

Quanto a Bruxelas, a proposta de orçamento enviada à Comissão Europeia seguiu com um formato bastante diferente do que chegou às mãos dos deputados na sexta-feira. A TSU, uma das bandeiras do PS, acabou por cair e foi o próprio primeiro-ministro a lamentar a diferença entre o documento inicial e o final. Costa chegou a consenso, mas não era o resultado que queria.

Um dia depois chegava a outro consenso: a TAP. Mas, cá está, trata-se de mais um resultado que não era o que António Costa desejava. No início da negociação, o chefe do Executivo chegou a dizer que, com acordo ou sem acordo, iria recuperar 51% da TAP. O Governo até pode ficar com mais capital que o consórcio da Gateway. Quando forem (e se forem) alienados os 5% de capital aos trabalhadores, o Estado ficará com 50% e o consórcio com 45%, mas a gestão continuará a ser privada. A única vitória é a de que o Estado terá voto de qualidade no desempate do Conselho de Administração que discute questões estratégicas. Foi mais um consenso em que Costa cedeu em pontos importantes.

E, por fim, o PS. António Costa conseguiu a liderança e tentou integrar nas suas fileiras a ala segurista. No entanto, momentos cruciais como a construção do Governo à esquerda ou as presidenciais mostraram fraturas profundas entre os socialistas. Francisco Assis e Álvaro Beleza, insatisfeitos com os acordos à esquerda e com um apoio implícito das hierarquias do PS a Sampaio da Nóvoa, não hesitaram em tecer criticas à liderança socialista, antevendo problemas no futuro.

Mascaras_sepCavaco

Cavaco Silva. Político? Eu? Não. Só nós últimos 30 anos

“Não esperem de mim ambiguidades, oscilações ou que entre em jogadas palacianas, de café ou jornalísticas. São tabuleiros em que não sei jogar e não estou interessado em aprender”, disse Cavaco Silva quando subiu ao palanque do congresso da Figueira da Foz como líder recém-eleito do PSD. Mesmo depois de mais de 30 anos de vida política ativa, exercendo os cargos com mais destaque no país, o discurso nunca mudou muito e o Presidente da República em funções ainda se descreve como um académico que por desígnio pessoal chegou “inesperadamente” à liderança de um dos maiores partidos portugueses e o resto é História.

Na sua autobiografia política, Cavaco Silva afirma mesmo que, ao contrário dos restantes políticos, nunca foi deputado, um cargo tradicional para quem tenta subir na hierarquia política. “Para mim, trata-se apenas de mais um indicador de que fui, de certo modo, um ‘não político’ no poder”, escreve. No entanto, é difícil acreditar nesta retórica quando se desfez um Governo de Bloco Central, se governou dois anos com um executivo minoritário, se conseguiu ganhar com duas maiorias absolutas consecutivas e se passou dez anos em Belém.

E se enquanto primeiro-ministro fez prevalecer o seu rumo para o país através de políticas públicas e sustentado por um Governo, negar a sua natureza política enquanto Presidente da República torna-se difícil devido ao caráter individual e independente deste cargo. Como Presidente, Cavaco Silva usou o veto político do Presidente em 25 diplomas aprovados pela Assembleia da República. Os temas que Cavaco travou prendiam-se especialmente com a família. E como político tentou com a sua influência promover uma solução de Governo diferente quando foi a crise do verão quente de 2013. Tentar um acordo entre PS/PSD e CDS foi uma jogada de não político?

Mascaras_sepMarcelo

Marcelo Rebelo de Sousa. Comentar até à Presidência da República

Desde 2000 que Marcelo Rebelo de Sousa se descolou da atividade política ativa para entrar todos os domingos na casa dos portugueses comentando desde as decisões políticas à atuação da seleção nacional de futebol. Uma mudança natural para quem já estava desde os anos 70 no meio da imprensa e para quem conseguiu conciliar a vida política com o comentário entre os anos 80 e os anos 90. Marcelo começou nos jornais, depois na rádio e finalmente na televisão, mas a sua intervenção nos meios de comunicação, especialmente depois do falhanço na corrida à Câmara de Lisboa e das dificuldades como líder do PSD, sempre pareceu antever algo mais.

Às perguntas insistentes dos vários pivots que se cruzaram com Marcelo, primeiro na TVI, depois na RTP e a seguir na TVI novamente nos últimos 16 anos, sobre o seu futuro político e a possibilidade de chegar a Belém, Marcelo Rebelo de Sousa sempre foi desviando a conversa, sem negar essa possibilidade. Mas continuou a emitir as suas opiniões sobre o PSD, partido do qual nunca se desfiliou, sobre os diferentes Governos, sobre a atuação dos Presidentes da República e ainda sobre vários outros temas, como futebol, cultura ou economia.

Uma posição privilegiada de influência e familiaridade em relação aos telespectadores, que se habituaram aos trejeitos do professor catedrático, às suas escolhas literárias e até às prendas que oferecia em direto a Judite de Sousa ou a José Alberto Carvalho.

A máscara de Marcelo colou-se à pele e não só era o disfarce de comentador, como de facto era mesmo e só comentador, até que…

Mesmo antes das eleições presidenciais estarem no horizonte, Marcelo Rebelo de Sousa preparava há muito a sua candidatura, algo que se confirmou quando chegaram as primeiras sondagens sobre quem é que os portugueses preferiam em Belém. Com António Guterres fora da corrida — alguém que lhe podia fazer concorrência direta –, Marcelo Rebelo de Sousa assumiu a sua candidatura e venceu as eleições.

Mascaras_sepCoelho

Pedro Passos Coelho. Um liberal que afinal sempre foi social-democrata

Mostrar que o PSD é um partido verdadeiramente social-democrata é a missão de Passos Coelho nesta reeleição para a liderança do partido, mas os argumentos ao longo dos últimos anos parecem ir contra esta convicção. “Criaremos, julgo eu, uma oportunidade para mostrar que o PSD continua a ser um partido social-democrata com a capacidade de fazer, de transformar o país, de mobilizar os portugueses e de oferecer do país uma visão ambiciosa que todos precisamos de concretizar”, afirmou o antigo primeiro-ministro na sua mensagem de lançamento da campanha.

Mas Passos Coelho, em 2008, tinha um discurso um pouco diferente. “Sou um reformista e sou um liberal, não sou de direita nem sou de esquerda, acredito nas pessoas e na sua iniciativa e acredito que são as empresas que criam riqueza, que criam emprego e que criam valor, não é o Estado que cria riqueza e que cria valor”, afirmou então em entrevista à TSF. Mais tarde, já como líder do PSD e prestes a vencer as eleições de 5 de junho de 2011, confirmou em entrevista ao Expresso — a 28 de maio de 2011 — que a social-democracia era um resquício histórico da liderança de Sá Carneiro no partido. “É verdade”, anuiu então o candidato a primeiro-ministro.

Agora, Passos Coelho lança-se na recandidatura ao partido com o slogan “Social-democracia, sempre!” e até afirma que mesmo nas medidas de austeridade que o seu Governo adotou, estas foram “sempre sociais-democratas”. Haverá uma parte do seu próprio partido que discordará destas afirmações, mas para já Passos Coelho está sozinho na corrida para a liderança do PSD e até afirma estar pronto para voltar a ser primeiro-ministro. Para este Carnaval, Passos foi buscar o disfarce de social-democrata ao baú e emprega-o na mensagem que passa aos militantes.

Mascaras_sepCatarina

Catarina Martins. A líder do protesto

Já lhes chamaram de tudo. O partido dos jovens, a esquerda antiga com roupa nova e com um ar mais cool. O partido do protesto e para o protesto. “A esquerda por Lisboa”, sem expressão nacional, com salpicos de alguns independentes e ideologicamente incoerente. Da direita à esquerda, todos foram colando rótulos ao Bloco de Esquerda, PCP incluído. Foi Carlos Carvalhas, por exemplo, que disse, em 1999, que o BE era a “cópia” do PCP. E já se sabe: cópia por cópia, mais valia escolher o “original”.

Quase a celebrar a maioridade, o Bloco parece ser, nesta altura, mais do que a máscara que lhe foram colando e pode dizer-se que muito se deve à recuperação feita por Catarina Martins.

O BE ainda é o partido do protesto? Esse foi um dos rótulos e uma das bandeiras do partido. A defesa das causas fraturantes, os programas de Governo mais amigos, menos preocupados com as regras europeias. O partido que defendeu medidas mais radicais, que votava sempre contra nos Orçamentos do Estado.

Hoje, o BE tem a terceira maior bancada parlamentar e, apesar de ter dado o apoio ao Governo PS, quer manter a independência e a defesa de algumas bandeiras que fizeram do Bloco um partido de protesto, mas agora com responsabilidade de Governo. Catarina Martins ainda é a líder do protesto? As últimas eleições mostraram que o BE cresceu por ter conseguido atrair votantes descontentes com outras forças políticas ou também com a política, mas seria injusto para o partido e para Catarina Martins dizer que só o conseguiu por cativar voto de protesto. O BE cresceu pelo seu programa e pela performance da líder. Ser de protesto é uma máscara que começou a pesar muito com os votos e Catarina Martins respondeu a esse peso com o apoio ao Governo.

O BE cresceu e já não é o partido acantonado no protesto. Entrou no arco da governação.

Depois das legislativas, a máscara do populismo do partido foi de novo colada ao BE. A candidata apoiada pelo BE, Marisa Matias, conseguiu o terceiro lugar, com mais do dobro dos votos de Edgar Silva, o candidato comunista, e o PCP não tardou a acusar o toque. Jerónimo de Sousa falou e deixou nas entrelinhas a ideia de que o BE tinha escolhido uma candidata “engraçadinha” que recorreu “à falta de rigor e de respeito pela verdade, bem como à exploração demagógica” para conseguir mais votos.

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Jerónimo de Sousa. Defende a Coreia do Norte

A colagem é recorrente e é feita muitas vezes pela oposição. O PCP não muda e continua a ser um dos partidos comunistas mais resistentes da Europa, não conseguindo descolar de regimes comunistas como Cuba, China ou Coreia do Norte. São dossiers que o PCP tem gerido com cautela ao longo dos anos — e Jerónimo de Sousa também.

Jerónimo chegou à liderança do partido não descolando da linha dura, mas com uma imagem simpática para o eleitorado. Mas ainda veste a máscara hoje?

Durante o longo mandato de Jerónimo de Sousa, houve algumas mudanças no PCP, com o rejuvenescimento da bancada parlamentar e até com o momento histórico de ver o partido apoiar um Governo socialista. Seria o suficiente para dizer que a máscara de partido e líder inflexível caía por terra. Mas a verdade é que o comunista e o PCP têm sido o maior obstáculo à esquerda para António Costa.

Já quanto à vertente externa, de aproximação a regimes comunistas, não tem sido fácil ao PCP lidar com a máscara de partido amigo de regimes não democráticos. Um exemplo disso aconteceu quando Bernardino Soares, então líder da bancada parlamentar do PCP, disse ter dúvidas de que não houvesse uma democracia na Coreia do Norte. E explicava porquê, em entrevista ao DN: “Temos falado nisso em vários congressos. Tenho muitas reservas em relação à filtragem da informação feita pelas agências internacionais“. A afirmação causou um enorme sururu no próprio Partido Comunista e levou, inclusive o eurodeputado comunista Joaquim Miranda a falar de um “novo posicionamento muito grave”.

No XVIII Congresso Nacional do PCP, o primeiro depois da morte de Álvaro Cunhal, em 2008, os comunistas introduziram uma alteração simbólica às suas teses. Desapareceu a frase “o imperialismo visa a desestabilização desses países [Coreia, Cuba, China]” e era acrescentado um ponto significativo: a partir daquele momento, o PCP comprometia-se a manter permanente equidade, observação e análise do que se passa naqueles países. Camaradas, mas com reservas, pareciam dizer os comunistas.

Mas o assunto não morreria ali. E os comunistas continuaram, ao longo dos anos, a tentar descolar a máscara. O próprio Jerónimo de Sousa perdeu a conta às vezes que fora desafiado a responder à questão: a Coreia do Norte é uma democracia?

Em setembro de 2015, vésperas de eleições e em declarações ao Público, Jerónimo de Sousa explicava pela enésima vez que não exista um modelo único e que a construção do socialismo depende sempre da realidade histórica e cultural de cada país. Em alguns casos, essa construção falhou mesmo. E em relação ao Partido dos Trabalhadores da Coreia, dizia Jerónimo, “temos [PCP] diferenças enormes”.

Mas nem todos conseguiram encaixar bem a fórmula – o que responder quando nos perguntam sobre a Coreia do Norte? Durante a corrida presidencial, em pleno debate com Marisa Matias e confrontado mais uma vez com a pergunta, o comunista Edgar Silva ainda tentou contorná-la, mas não havia escapatória. “A Coreia do Norte é uma ditadura ou uma democracia?” “Não vejo que seja [a democracia] um privilégio da Coreia do Norte”. Ao lado, Marisa Matias respondia: “Eu considero a Coreia do Norte uma ditadura que ataca o seu povo.”