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© Fábio Pinto

© Fábio Pinto

Quando o amor envelhece (mas não desaparece)

Três casais juntos há mais de 50 anos contaram ao Observador como era (e é) amar. Do amor que nasceu nas ruas de Alfama ao que foi por África adentro. E também o que se transformou em cumplicidade.

Em 1960 registaram-se em Portugal 749 divórcios para mais de 69 mil casamentos. Em 2013 o número corresponde a mais de 22 mil casos de separação, tendo em conta menos de 32 mil uniões matrimoniais. Os números são da Pordata e retratam a realidade de hoje em dia — há cada vez menos casamentos no país. Posto isto, o que faz um casal manter-se unido ao longo dos anos? E o que acontece ao amor depois de uma vida partilhada a dois? O Observador ouviu três casais que estão juntos há meio século e que contam como era e é amar.

 

Os padrinhos de Alfama

Natália e Eduardo Correia viveram toda a vida em Alfama. Foi por conta das marchas populares que o casal se conheceu e apaixonou. Natália ensaiava para as marchas numa praça no Chão do Loureiro (hoje um parque de estacionamento) e um jovem Eduardo, de 16 anos, tinha por hábito ir vê-la dançar. Todos os domingos dirigia-se à coletividade para observar aquela que seria a companheira de longa data. A miúda da saia ao xadrez, como se recorda.

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A longa relação — contam-se 56 anos de casados e outros seis de namoro — está intrinsecamente ligada às ruas labirínticas do bairro. Dali saíram apenas para viajar nos limites das fronteiras ibéricas ou, em raras ocasiões, trabalhar. Natália, hoje com 77 anos, garante que o teto que a acolhe numa base diária é o mesmo que a viu nascer. É lisboeta, é alfamista.

“Ele andava atrás de mim, a arrastar a asa”, diz uma Natália Correia divertida. Está sentada em cima da cama, ao lado do marido, num quarto pequeno e de chão inclinado. Os movimentos da esposa estão reduzidos, as pernas em ferida são o resultado de uma vida intensa enquanto operária. Ele, por seu turno, esteve 40 anos no Arsenal da Marinha como mecânico. Feita a explicação, recuam mais fundo no tempo: à data, ainda em adolescentes, não falavam mas dançavam muito. De tanto rodopio nasceu a verbalização de um pedido de namoro por parte de Eduardo, feito na coletividade. “Ia ver a marcha, vinha ao baile e dançava sempre com ela. Chegou a um ponto em que perguntei ‘Como é?'”.

Nos primeiros tempos a união era secreta. De cada vez que a rapariga ia ter com Eduardo dizia à tia, com quem vivia, que ia comprar café para fazer em casa. “Ela, coitadinha, nem desconfiava. Nem lhe conto os pacotes e pacotes de café que cheguei a juntar”, revela entusiasmada. “Foi um namoro normal. Houve uns beijinhos e tal”, acrescenta Eduardo que troca olhares cúmplices com a esposa. Namorar era fazer companhia e conversar, explica o casal que compara as relações de então com as de agora. “Ele vinha cá a casa e eu, muitas vezes, estava a trabalhar com a minha tia. Fazia serão e ele ficava por aqui. Depois levava-me à porta e dávamos um beijinho”.

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O casamento chegou aos 21 anos para ela e aos 22 para ele, a 25 de maio de 1958, na igreja de S. Vicente — Alfama em peso foi ver. O copo de água, muito a propósito, deu-se na mesma coletividade onde se conheceram. Mas a união não começou da melhor maneira. É Eduardo quem escolhe falar do assunto; quer despachar o episódio. “Há uma passagem na nossa vida que nos marcou aos dois”. Não consegue dizer mais. Natália explica o resto: “Foi um filho que morreu. Chamava-se Rui Filipe e morreu de meningite. Trouxe-o para casa do hospital e ele ainda comeu — era um rapagão, tinha sete meses mas parecia um menino com dois anos”, recorda emocionada. “Morreu no outro dia. Fiquei muito traumatizada e entendi que não podia ter mais filhos. Palermice”.

O casal não teve mais filhos, de sangue pelo menos. Passado pouco tempo a cunhada de Natália teve uma criança, de nome Rui Filipe em homenagem a quem já tinha partido. Por força das circunstâncias, aquele casal divorciou-se e Natália decidiu-se a tomar conta do menino — como a mãe também morava em Alfama, a criança tinha por hábito passar muito tempo em casa da operária reformada. “Ele fazia tudo comigo e até vinha cá dormir. Fui eu que o calcei e fui eu que o casei”, conta a madrinha, como Rui Filipe ainda hoje lhe chama. “Foi um filho e, depois, criei-lhe os filhos”, referindo-se ainda à menina que entrou em sua casa com três semanas e de lá saiu mulher, com 22 anos.

"Não vou dizer que durante 50 anos não houve altos e baixos, em todos os casais há. Mas nada que não se pudesse superar. Senão... senão ele tinha ido à viola!"
Natália Correia

O casal garante que ainda hoje se dá bem. Até as pernas de Natália a terem traído, ela fazia questão de acompanhar o marido nos jogos do Benfica, no Estádio da Luz. Os dois são sócios do clube e, atualmente, é o marido quem paga as quotas. Com orgulho. É também Eduardo quem sai para fazer as compras, enquanto Natália ajeita-se como pode pela casa e, à janela, dedica-se a ver a vida passar. Os filhos e netos emprestados vão marcando presença com frequência (sobretudo para pedir dinheiro, atira Natália em jeito de brincadeira) e a vizinhança faz de companhia muitas das vezes.

Voltamos à conversa. Numa das fotografias em cima da cómoda, no quarto, vê-se um Eduardo já enrugado a beijar uma Natália também de idade avançada. Foi tirada no dia em que celebraram 50 anos de casados. A foto foi oferecida pelo filho-afilhado. “Não vou dizer que durante 50 anos não houve altos e baixos, em todos os casais há. Mas nada que não se pudesse superar. Senão… senão ele tinha ido à viola!”, garante Natália. O marido ri-se e encolhe os ombros: “Temos uma coisa inédita no nosso dedo, três alianças. A do casamento e a dos 25 anos. A que está por cima, e que liga as outras duas, é a dos 50 anos. Ela a mesma coisa”.

 

África tua, África minha

“O meu marido conheceu-me primeiro porque em Timor havia poucas raparigas novas”. Ana Maria de Melo Parente (73 anos, educadora de infância reformada) recorda-se dos eventos com precisão. Nasceu em Lisboa, mas com apenas seis anos mudou-se para Timor-Leste em nome da profissão do pai (juiz militar). Tinha 19 anos quando conheceu o “Zé” de 25 anos, um alferes que havia sido destacado de Goa e andava por Díli a fazer vida de quartel — por ali nunca encontrou problemas; aliás, o único conflito foi com Ana Maria, como gosta de contar.

Na mocidade do casal havia praia ao domingo, durante todo o ano. Onde viviam era um meio pequeno, pelo que o divertimento acontecia nos clubes onde havia bailarico e no areal onde José Maria de Melo Parente, 79 e oficial de carreira reformado, descobriu aquela que viria a ser sua mulher. Ana Maria estava, então, na companhia da irmã Joana. “Tinham-lhe dito que uma das irmãs namorava e a outra não. Ele começou a olhar para as duas a pensar qual delas estaria comprometida”, conta a mulher divertida. Olha para o marido e pede confirmação. “Foi assim?”. Um suspeito “mais ou menos” sai da boca de José Maria.

"Acho que a guerra cimentou muito as nossas ligações. O amor também se transformou numa grande amizade e cumplicidade. E, depois, somos diferentes e as pessoas completam-se"
José Maria

Ana Maria só viu o marido “com olhos de ver” no carnaval de 1960, numa festa que ocupou a messe dos oficiais. A jovem rapariga estava a dançar com um amigo quando vê alguém que não conhece. “Éramos poucos europeus por ali, sabe? Então, vejo um rapaz com bom aspeto e de óculos escuros — era de noite. Achei aquilo uma coisa muito esquisita. Disse para o meu amigo ‘Tito, quem é aquele rapaz?’. Ele respondeu-me que era um alferes da destacada”. Não demorou muito a que o casal desse os primeiros passos de dança naquela noite. Era o começo de uma aventura.

Em Díli, os dois encontravam-se com frequência. Ou, como Ana Maria faz questão de dizer, “o Zé fazia-se de encontrado”. Ia às mesmas lojas que ela e apanhava boleia de oficiais que tinham por hábito ir buscar revistas internacionais a casa do senhor juiz, pai de Ana. “Ele arranjava pretexto para me ver, mas eu também me fazia de cara”, garante. “Mas, apesar de nos encontrarmos muitas vezes, ele não tinha coragem para dizer que gostava de mim”. Foi só quando o tempo de comissão ameaçou chegar ao fim, o que representava um regresso a Portugal, que José Maria deixou-se controlar pelo impulso e escreveu uma carta apaixonada à futura mulher. Nela, enviada por estafeta, estava um pedido de namoro. Ana Maria respondeu que ia pensar. “Ia pensar até hoje!”, reclama José.

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Três meses depois deu-se o casamento. Uma festa pequena, com cerca de 50 pessoas, seguida de uma lua-de-mel na ilha de Atauro. A partir daqui o enredo adensa-se. José Maria é, ao longo dos anos, destacado por três vezes para terras africanas ao serviço do exército português. Estamos em plena Guerra Colonial. O casal recorda, sem hesitação, as datas dos diferentes destacamentos — de novembro de 1963 a janeiro de 1966, de abril de 1967 a junho de 1969 e de agosto de 1971 até depois do 25 de abril de 1974. Duas vezes em Angola e uma em Moçambique. Nos intervalos houve estadias no Convento de Mafra, onde a filha Rita quase ia nascendo e, garante José divertido, o filho Rui foi concebido. Mas também em Coimbra, Porto e até São Miguel. Depois da tempestade, o período de maior bonança — entenda-se estabilidade — foi vivido na Amadora.

Ana Maria fez sempre questão de acompanhar as “aventuras” do marido em África. “Ele estava em sítios muito maus e não havia autorização para as famílias lá estarem. Então, eu ia para o local mais próximo possível dele”. No primeiro destacamento, a jovem esposa fez as malas um mês após o nascimento do segundo filho e foi além-fronteiras com os pequenos. A compensação era apenas moral: “Não me importava de estar em condições mais desfavoráveis. Sentia-me mais segura porque pensava que se acontecesse alguma coisa ao Zé eu saberia logo”, conta Ana.

Nas estadias em aldeias próximas dos diferentes palcos de guerra, a comunicação entre o casal fazia-se através das colunas de abastecimento que traziam os aerogramas do “Zé”. Neles, o marido fugia ao tópico da guerra e, em troca, recebia palavras que descreviam o quotidiano da mulher e dos filhos. José nunca contava quando saía em operações, da mesma forma que nunca se despedia da mulher nas poucas vezes que se viam. Os aerogramas eram numerados para que, quando ele se tivesse de ausentar em combate, Ana não desse pela falta de correspondência. Os chefes de coluna tinham ordem para entregar os aerogramas na mesma. Mais tarde, o embuste foi descoberto. “Ralhei com ele!”.

Pela casa onde hoje vivem, na capital portuguesa, estão espalhados diversos artefactos que correspondem aos destinos por onde passaram em conjunto. A isso acrescentam-se muitas fotografias, em particular o álbum que a família ofereceu ao casal quando este celebrou 50 anos de casados.

Depois de dois filhos e de dois netos na casa dos 20, Ana e José garantem que foi África e a guerra que os uniu. “Passámos por muitas aflições, desde motivos de saúde a falta de dinheiro. Tudo isso nos ligou”, conta Ana. José acrescenta: “Acho que a guerra cimentou muito as nossas ligações. O amor também se transformou numa grande amizade e cumplicidade. E, depois, somos diferentes e as pessoas completam-se. O que é preciso na vida? Nada de facilitismos e alguma sorte”, remata.

 

A pintura depois do amor

“Manecas é do meu marido, comprei-o por 25 tostões”, conta Maria Manecas, 84 anos. “A senhora que nos fez o registo disse que para ficar com o nome do meu marido tinha de pagar mais”, explica. Agostinho Amaro Manecas, 85, junta-se à brincadeira: “Vendi o nome à minha mulher, mas não recebi nada do negócio”. Estão casados há 53 anos.

A senhora Manecas já tinha 27 anos quando conheceu o marido. Era doméstica de uma grande casa em Queluz — família à qual ainda hoje está ligada — e tinha por hábito estar à janela. Era nessas ocasiões que via diversos soldados passar de bicicleta. Entre eles, estava o futuro companheiro. “Ao sábado era quando eu regava as flores da casa. Ele era soldado em Queluz mas vivia em Algueirão, pelo que passava sempre com os outros soldados de bicicleta”, conta. Mais tarde, Agostinho tornou-se carteiro — foi funcionários dos CTT durante 43 anos. A nova profissão foi a oportunidade ideal para estreitar relações com Maria. “Ele ia levar o correio lá a casa e metia conversa comigo”. A conversa, tida à janela ou à porta de casa, durou 15 meses.

Seguiu-se um namoro que Agostinho diz ter começado em 1959 — durante da conversa não falha uma data que seja. O romance entre ambos tinha dia marcado para acontecer: ao domingo, pela tarde, Agostinho chegava de bicicleta e levava a namorada para debaixo de uma mesma oliveira. O cenário era repetido vezes sem conta. Enquanto ele estudava para completar o primeiro ciclo (era a forma de ascender dentro dos CTT), ela levava material para costurar. Às vezes, Agostinho tentava chegar-se mais perto da namorada. Ela dava-lhe para trás. Ainda assim, diz Maria Manecas, houve oportunidade para alguns “beijinhos”.

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Aos 30 anos Maria Manecas era uma mulher casada. “Casámos a 4 de setembro de 1960”, diz Agostinho sem falhar nas contas. Depois de Queluz, o casal fez vida na Praia das Maçãs, onde esteve cerca de 20 anos. Por essa altura já o marido era chefe da estação de correios local (foi até responsável por várias estações, de Lisboa até Sintra). A casa de Maria e Agostinho ficava por cima da respetiva estação. “Os mesmos 80 metros quadrados que estavam em baixo, estavam em cima. Eram 11 metros de corredor e seis divisões”, conta a ex-doméstica que, por ali, também trabalhou nas limpezas, além de cuidar do jardim que foi construído a quatro mãos.

O casal nunca teve filhos. Não por falta de vontade, mas porque simplesmente não aconteceu. Maria passou os primeiros quatros anos do casamento sem conseguir engravidar. Quando finalmente chegou a boa nova, teve o azar de perder o feto. Ainda hoje se recorda de como, aos três meses de gravidez, optou por não contar ao esposo. Queria surpreendê-lo. As coisas não correm pelo melhor e Maria nunca mais voltou a engravidar. “Gostava muito de ter filhos, sempre gostei de crianças”, lamenta. Agostinho argumenta: “Não temos filhos, mas temos sobrinhos que são uma riqueza”. Contando os dois lados, são 25 sobrinhos diretos. Além disso, o casal já perdeu noção das recentes adições à família. Em parte, foi por isso que celebraram os 50 anos de casados, para conhecer quem tinha nome mas quem ainda não tinha rosto.

"Agora já não há amor. Há carinho e respeito. Há ligações"
Maria de Jesus Silva Manecas

Uma vez reformados, compraram casa em Mafra, onde vivem até hoje. É pequena, mas não tão pequena como a da Praia das Maçãs e está forrada a quadros. Aos 64 e 65 anos, respetivamente, Maria e Agostinho descobriram o gosto pela pintura, um hobby que os une. A Câmara de Mafra abriu, à data, um atelier onde membros da terceira idade, mas também crianças, se podiam inscrever. Por ali aprenderam o básico e nunca mais pararam de pintar. Até hoje, Agostinho já pintou 406 quadros. Maria Manecas, que diz ter menos tempo, terá cerca de 160 da sua autoria. Não vendem um exemplar que seja. Preferem antes dá-los: a familiares, amigos, médicos e até à Santa Casa da Misericórdia.

O quotidiano, explicam, é passado entre cores e pincéis. Fora isso, “umas vezes fala-se, outras vezes discute-se”. Têm vidas independentes, mas consideram-se uma equipa. “Procuramos entender-nos ao longo do tempo. Agora já não há amor. Há carinho e respeito. Há ligações”.

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