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Shakespeare? Cervantes? Isso é para quem não gosta de literatura

São como deuses literários mas também conseguiram motivar críticas. Shakespeare, Cervantes, Camões, Vieira, com reputações imaculadas e críticos inflamados. Carlos Maria Bobone recorda-os.

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Eles são os donos da língua. Fala-se da língua de Cervantes e da língua de Camões, Shakespeare deu à sua mais de 2000 palavras e Pessoa coroou o Padre António Vieira como Imperador da nossa. Língua de Cervantes e de Camões, como se o bom uso invertesse a posse, como se a língua reconhecesse a paternidade a um dos seus filhos, como se um súbdito conseguisse dominar com tal perícia o seu vocabulário que merecesse reinar sobre toda a produção linguística de um país. Como se cada tecla batida por um burocrata prestasse vassalagem ao Vieira repoltreado no seu sólio barroco, como se cada letra aprendida a custo nos bancos da escola fosse uma concessão do Bardo de Avon aos seus compatriotas, como se cada saudação banal, cada texto aprimorado pelos mais cuidadosos estetas, cada conversa de circunstância ou cada poema devesse a procedência a Cervantes ou a Camões, donos das suas línguas.

Estes são os grandes mestres; os nossos são os primeiros entre os pedagogos, os fantasistas e os cérebros da língua – não há língua mais pura, seja no Padre João de Lucena, seja nas Décadas de João de Barros ou de Diogo do Couto, seja nas Histórias de Herculano; não há mente mais imaginativa, nem na Peregrinação de Mendes Pinto, nem nos romances de Camilo; não há inteligência mais vibrante, nem nas Imagens de Frei Heitor Pinto, nem na crítica social queirosiana. E sobretudo, não há conjugação igual de todos estes elementos, capaz de titular um autor português ao nível destes. Os outros, os estrangeiros, também nos seus países serão exaltados com o mesmo entusiasmo.

Não adianta muito gabá-los: este quarteto é tão grande que não há hipérbole que os não diminua, elogio que não soe a vitupério diante da magnificência do seu génio, sempre merecedor de mais e melhores qualitativos. Todos os elogios apoucam estes escritores e podem ser quase vistos como insultos; no entanto, mesmo que uma galantaria mais tosca seja particularmente aviltante, os zelotas da sensibilidade dos escribas podem estar descansados: eles já estão habituados ao insulto e ao menoscabo, e muitas vezes do mais doloroso. É verdade, a reputação destes colossos que fazem o de Rodes parecer um anão não foi construída apenas debaixo de um aplauso unânime. O tamanho das suas reputações esconderá, decerto, lá no alto, longe do alcance da vista humana, as cicatrizes de uns golpes mais mordazes; no entanto, todos estes – Shakespeare, Cervantes, Camões, Vieira – têm críticos inflamados das suas obras.

Não falamos apenas de contemporâneos dos autores que podiam ter o juízo turvado por quezílias pessoais ou pela poeira do tempo. Aí o rol seria extenso: também Ramalho Ortigão disse que o poeta do Sentimento de um Ocidental podia ser “mais Cesário e menos Verde”, o grande crítico Sainte-Beuve pouco ligou a Baudelaire, Flaubert achava que Balzac não sabia escrever, e podíamos desenrolar uma extensa lista de julgamentos literários que a História contrariou; mais interessante é o caso daqueles que, mesmo sabendo que a vaga de reconhecimento generalizado vem já de longe, se opõem a ela sem medo do embate contra a sua força colossal. É certo que, no mais das vezes, a onda acaba por varrer os críticos; no entanto, há um ou outro que ainda consegue resistir.

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Em terra de cegos, quem tem olho…

De Camões, por exemplo, é difícil encontrar, fora das aulas de Português do ensino básico, um verdadeiro detractor. Na verdade, é preciso recuar ao século XIX para encontrar uma polémica de monta sobre o valor dos Lusíadas. Ora, esta polémica só podia ter no centro a mais quixotesca personagem da entrada do século XIX, um estoira-vergas de péssimo feitio e óptimo estilo, o mais maldito dos escritores portugueses, o folião miguelista José Agostinho de Macedo. Do Padre José Agostinho de Macedo, bastava cair uma gota de tinta da pena para causar uma verdadeira tempestade. Polemizou contra tudo o que mexia — dos doutrinadores liberais a Bocage — e, neste caso, até contra aquilo que já não mexia há muito: até o intocável Camões foi alvo da sua pena virulenta.

Luiz Vaz de Camões

Na verdade, o caso até começou mais pacífico do que é costume com o árcade presbítero. José Agostinho de Macedo decidiu fazer um poema a que chamou O Oriente, sobre a prodigiosa aventura dos pioneiros argonautas portugueses até à Índia. Ressalvou, no prefácio, que não intentava suplantar Camões, mas que a dimensão da empreitada quatrocentista justificava novas celebrações em verso e que novas gerações cantassem à sua maneira os grandes feitos avoengos. Há, é certo, algumas farpas espetadas ao texto dos Lusíadas, mas que até podiam passar incólumes, não fosse o Padre Macedo já conhecido e detestado por boa parte da intelectualidade Portuguesa.

Entre os seus maiores inimigos estava Nuno Pato Moniz, um jornalista maçom que, pela sua condição, nunca poderia ser grande adepto do Padre Macedo, que tanto gostava de atacar os pedreiros-livres. Pato Moniz, porém, também não lhe fica atrás no ódio: entre 1810 e 1825 publica uma primeira Sova no padre José Agostinho de Macedo, uma Sova Segunda no padre José Agostinho de Macedo, um poema satírico de nove cantos chamado Agostinheida, uma refutação de um panfleto de José Agostinho sobre os sebastianistas, um segundo folheto sobre o mesmo tema, um exame crítico a um poema do padre e pouco mais.

Ora, está claro que, aparecida a oportunidade, Pato Moniz não pode deixar de chasquear do seu alvo preferido. Lançou então um Exame Analytico e parallelo do poema Oriente do José Agostinho de Macedo com A Lusiada de Camões que pendia largamente, e como seria de esperar, para o poeta quinhentista.

José Agostinho de Macedo repete que o tema não é um exclusivo de Camões e propõe-se a analisar o grande argumento dos seus adversários: a ideia de que o poema de Camões é já tão perfeito, émulo tão acabado da Odisseia portuguesa, que de pouco vale remexer no assunto.

Agostinho quis, então, responder àquilo que considerou uma aleivosia presente nesse texto. Escreveu para isso a análise analisada, em defesa do seu poema. Estalou então a polémica: embora José Agostinho de Macedo repetisse que nada tinha contra os Lusíadas, sobressaía o seu estilo combativo na defesa de O Oriente; para proteger o seu, atacava o rival. Novas defesas de Camões vieram – de vários lados – que obrigaram José Agostinho de Macedo a tornar ao assunto. Lavrou então uma Censura das Lusíadas que é, de todos os textos sobre o assunto, aquele em que as reservas em relação ao texto de Camões são mais notórias. Agostinho repete que o tema não é um exclusivo de Camões e propõe-se a analisar o grande argumento dos seus adversários: a ideia de que o poema de Camões é já tão perfeito, émulo tão acabado da Odisseia portuguesa, que de pouco vale remexer no assunto. Agostinho de Macedo analisa, então, o poema à cata dos seus erros. Acusa-o de ser aborrecido, de paganismo excessivo, de imitar passagens de outros autores, ou de não compreender bem o sentido da poesia épica ao dividir a acção por vários protagonistas. Na sua análise “racional” dos Lusíadas considera absurdo que o poeta assinale que vai cantar “as armas” que chegaram à Índia, quando o primeiro a usar, de facto, armas na Índia é D. Francisco de Almeida, que já não é mencionado no poema. O livro analisa canto a canto a obra de Camões, e em todos acha insuficiências, umas mais descabidas do que outras, mas todas expostas com grande fervor. Chama também, para o seu lado da contenda, a memória de várias figuras antigas: Luís António Verney, ou Francisco da Silva Coelho estariam entre outros críticos dos Lusíadas (embora a sua crítica seja sempre mais circunstancial do que a de José Agostinho de Macedo).

Curiosamente, algumas das críticas do Padre José Agostinho de Macedo são recuperadas por Ezra Pound, que também pensa que o excesso mitológico opila a leitura. É, ainda assim, fraco aliado para o autor do Oriente, já que em tudo o resto louva Camões.

A sotaina escurece o juízo

Macedo foi, nesta cruzada, um cavaleiro quase solitário. Mais sorte, porém, tiveram os adversários do Padre António Vieira, que formaram até aos alvores do século XX um grupo mais numeroso. É que sobre o Jesuíta pendia o ónus da sotaina Inaciana, tão detestada por uma longa linhagem que vai de Pombal à primeira república. Como se pode ver no livro de José Eduardo Franco – Vieira na literatura anti-Jesuítica – demorou até que a posição oficiosa da literatura jacobina resgatasse Vieira das vestes talares que o prendiam, e o considerasse uma vítima ou um dissidente da prepotência jesuítica.

Antes disso, porém, foi apodado de louco, maníaco do quinto império, conspirador e calculista. Oliveira Martins, por exemplo, via nele um hábil demónio, um portento de capacidades ao serviço do mal – a causa jesuíta. Também Teófilo Braga, uma das maiores autoridades literárias do século XIX, lente em Coimbra e Republicano de proa, via em Vieira a personificação dos males Jesuíticos. Um calculismo cínico com que não se podia contar, um apego secreto ao poder, uma megalomania e umas loucuras místicas que não impressionavam um espírito positivo e progressista como o de Teófilo Braga. Vieira era o Jesuíta sem pátria, só ao serviço da Companhia Inaciana, mesmo que isso prejudicasse o país. Vieira, de facto, nos séculos que seguem a sua morte, é atacado por todos os lados. Pombal chama-lhe herético e judaizante, outros tomam-no por uma eminência parda na corte brigantina, joguete de uma cúria cesarista, ultramontana, que quer subjugar todos os Estados à sua influência. São muitos, de facto, os escritores que vêem melhor em Vieira a veste negra do que o estilo trabalhado dos sermões; há outros, no entanto, que passam de uma acusação generalizada ao jesuitismo para um verdadeiro ataque ao estilo do escritor. O primeiro deles é Luís António Verney, para quem a mecânica límpida da razão não se compadecia com arrebiques e prosas debruadas. António Sérgio também critica o formalismo de Vieira, a sua prosa vazia, mas tem uma intenção mais lata: António Sérgio quer justificar o atraso português com o obscurantismo religioso, que deixava a razão mirrar como um músculo inactivo, ocupado que estava apenas com floreados estilísticos, pompa e cerimonial fátuo. Vieira seria, assim, o exemplo estilístico de uma maleita social.

Padre António Vieira

São estas as críticas mais constantes a Vieira: o seu misticismo e a ornamentação excessiva da sua prosa. Garrett também confirma a segunda. Considera António Vieira um mestre da língua, mas nefasto para a literatura. Isto é, tinha tal habilidade que era capaz de fermentar o nada até criar um sermão, mas tratava-se de um ilusionista sem substância. Confirma-se, assim, o eixo central das críticas: sebastianismo e prosa barroca. As outras vão variando: entre herético e ultramontano, Vieira cobre a gama inteira dos contrários.

Vieira sofreu, para trepar pela escala literária, com o peso da sua bata negra. Não foi o único. Outros sofreram, se não com a batina, com a interferência das relações pessoais. Cervantes foi um deles.

A engenhosa crítica

Cervantes e o seu D. Quixote são talvez o mais cómico destes casos porque, além de D. Quixote ser uma grande personagem de ficção, tem também críticos ficcionais. Não é, de facto, fácil encontrar grandes críticos do Quixote. Há Nabokov, que defende que de um romance irregular, meio bufo, com páginas brilhantes engoroladas entre outras banais, com contos já conhecidos encaixados a martelo na narrativa, brotou uma personagem que ultrapassa largamente o romance de que saiu. Afora este caso, as maiores críticas são ficcionais. A primeira, apesar de contemporânea de Quixote, merece a referência pelo pitoresco da situação. Há uma obra, mais conhecida por eruditos mas com certa projecção em Espanha, conhecida por Quixote de Avellaneda. Trata-se de um segundo volume apócrifo da obra de Cervantes, lavrado antes do legítimo autor dar à estampa o segundo tomo do seu romance, assinado por um fictício Alonso Fernandez de Avellaneda. O verdadeiro autor não é conhecido: especula-se se há-de ser Lope de Vega ou alguém próximo do dramaturgo, escrito como vingança contra Cervantes. Isto porque o Quixote de Avellaneda, embora escrito como uma continuação do original, volta e meia goza com a velhice e com a personalidade de Cervantes. A obra teve grande êxito aquando da publicação e terá mesmo irritado Cervantes, já que no segundo tomo do seu livro várias vezes tem a preocupação de desmentir e menorizar o falso cronista das aventuras do seu cavaleiro da Mancha.

Outra crítica ficcional, essa sim já mais elaborada, vem da mão de Jorge Luis Borges. Este não é um crítico de Cervantes – bem pelo contrário – mas é-o o seu conto Pierre Ménard autor do Quixote.

A crítica, embora tosca e pessoal, podia ser tomada num sentido mais lato, se compreendêssemos as diferenças de estilo como formas de mostrar como o Quixote devia ter sido feito. O autor do apócrifo tem uma escrita mais estilizada, gongórica, à boa maneira barroca; no entanto, as suas personagens, como explicou Juan Manuel de Prada num recente artigo para o ABC sobre o assunto, só mudam por perda de dimensão Humana.

Outra crítica ficcional, essa sim já mais elaborada, vem da mão de Jorge Luis Borges. Este não é um crítico de Cervantes – bem pelo contrário – mas é-o o seu conto Pierre Ménard autor do Quixote. O conto, escrito como uma espécie de crítica literária aos papéis encontrados de Pierre Ménard, relata o processo de transcrição da obra de Cervantes operado por este fictício Pierre Ménard. Pierre Ménard não quer traduzir, nem reescrever as aventuras do engenhoso fidalgo; quer transcrevê-las, palavra por palavra. Ora, isto torna o trabalho de Ménard, para o crítico – personagem central do conto –, muito superior ao de Cervantes. Aquilo que, escrito no século XVII, é banal, tem uma nova frescura no século XX. Escrever no século de Proust à maneira de Cervantes têm uma ironia que ultrapassa a do gentil-homem a lutar com moinhos de vento. A escrita de um romance de cavalarias sobre um romance a imitar os romances de cavalaria tem uma complexidade pós-moderna, uma subtileza, que o romance de Miguel Cervantes nem nos mais inspirados momentos sonha alcançar.

Miguel de Cervantes

A crítica de Borges atinge, obviamente, mais a retórica contemporânea da subjectividade completa do que Cervantes; mas a crítica da sua personagem-narrador não. Na verdade, o narrador representa uma concepção muito moderna, à moda de Derrida e quejandos, que só valoriza a literatura que expõe os arcanos da sua própria construção. Para esta escola, derivada da tese marxista de que a literatura não pode funcionar como alienação, o fito já não é expor os problemas sociais, mas sim os problemas da própria literatura. Só é literatura, para estes sisudos exegetas, aquela que em vez de contar uma história explica como esta é contada. Isto, como Borges intui, embora possa revolucionar o cânone literário se for feito com uma coragem de o afrontar que muitas vezes os intérpretes não têm, também o torna insuportavelmente mais chato. Graças a Deus que a crítica à obra de Pierre Ménard é apenas ficção.

Shakes vs. Shav

Cervantes, porém, não é o único a sofrer no reino do faz-de-conta. Shakespeare, a principal vítima dos delatores do cânone literário, também já foi alvo de gozo num engraçado teatro de marionetas. A ideia veio, como não podia deixar de ser, do seu grande inimigo George Bernard Shaw. Shaw, antes de se dedicar à escrita de teatro, costumava criticá-lo. Já nessa altura se notava que as críticas às peças de Shakespeare eram particularmente ásperas. A maior denúncia do dramaturgo de Avon porém, veio num prefácio – ou não fosse Shaw conhecido como o dramaturgo que completa os seus prefácios com umas peças, em vez de acrescentar às peças um prefácio – às Três Peças para puritanos. Shakespeare sofre, nessas páginas, como nem Romeu diante da Julieta morta; Shaw ataca a sua moral, a sua parca noção da sociedade, acusa a Grã-Bretanha de bardolatria, o bardo de histerismo, enfim: nem a carta de Tolstói em que este confessa que sempre se aborreceu de morte a ler Shakespeare atingiu com tanta força o dramaturgo do Globe.

O autor de Pigmalião ficou conhecido como o grande inimigo de Shakespeare, polemizou – como aliás fazia com tudo – com Chesterton sobre o assunto e a contenda acabou por inspirar vários autores menores de teatro cómico, que em palco encenavam o debate entre os dois dramaturgos.

As declarações, como quase todas as de Shaw, deram que falar. O autor de Pigmalião ficou conhecido como o grande inimigo de Shakespeare, polemizou – como aliás fazia com tudo – com Chesterton sobre o assunto e a contenda acabou por inspirar vários autores menores de teatro cómico, que em palco encenavam o debate entre os dois dramaturgos. Shaw, com o seu humor característico, decidiu imitá-los: a última peça do volume do seu teatro completo tem uma página e meia e chama-se Shakes vs. Shav. É um curto, mas bastante movimentado, teatro de marionetas: começa com Shakes, no seu estilo grandíloquo, à procura do George Bernard Shav (as corruptelas são tão óbvias que quase passam por gralhas) que tanto o ofende. Encontram-se, lutam, Shav, como não podia deixar de ser para um progressista, vence a contenda devido ao vigor da sua juventude, e partem para o confronto intelectual. Este, no entanto, também dura pouco tempo. Shakes gaba as suas personagens e traz à liça Macbeth; Shav, aí, nem faz valer as suas prédicas: resgata Rob Roy a Sir Walter Scott, e as duas personagens partem para nova rixa, ganha pelo gaélico ladrão de Scott. Shav quer dar por finda a disputa, mas Shakes não se dá por vencido. Começa a debitar algumas das suas frases mais famosas, que Shav vai desmerecendo e confrontando com outras que considera melhores.

William Shakespeare

É nesta fase que sobressai uma das principais críticas de George Bernard Shaw a Shakespeare. Explica a sua personagem que a grande diferença entre as peças de um e de outro grassa no objectivo. Shakes, diz Shav, não foi o primeiro a falar de um coração entristecido, mas Shav foi o primeiro a explicar o que se devia fazer com ele. Numa frase curta, resume-se o principal da crítica de Shaw a Shakespeare: Shaw é um moralista das traseiras. Prega que não existe moral, mas não consegue desfrutar de uma peça que não seja apologética das suas concepções. O grande sentido de humor que sempre teve foi disfarçando a prisão em que as suas teses o mantinham. Contudo, as peças são sempre sobre problemas sociais, nunca sobre um drama individual. Ora, quem não liga à auscultação da sua própria natureza não pode apreciar Shakespeare.

Livros Sagrados

Não é por acaso que todas estas polémicas se dão já na entrada da Modernidade. Nem é, também, por míngua de autores canónicos e pretendentes de sangue na guelra. Também com Dante, Ronsard ou Homero se podia criar polémica a este propósito. E embora todos eles façam correr muita tinta desavinda, a sua menorização nunca é motivo de choque tão grande quanto a dos autores aqui referidos. Não porque não tivessem o seu lugar já sedimentado no cânone literário; o próprio cânone é que demorou a ganhar o estatuto sagrado de que goza hoje em dia. Em pleno século XVIII ainda se discutia em força na querela dos Antigos e Modernos a respeito do valor da literatura.

O cânone literário dá assim conta da valorização do estético como um valor que redime o Homem, de tal modo que aqueles que se atrevem a contestá-lo têm um tratamento quase herético.

Os modernos, a princípio, com Desmarets e alguns apoiantes na Academia Francesa, defendiam que a literatura em si não tinha valor senão legitimada pelo Cristianismo. A literatura antiga seria assim mero entretenimento, concupiscência intelectual, inútil para aquilo que verdadeiramente interessava: a salvação do Homem. Já em Itália, séculos antes, se discutia o mesmo assunto na querela da linguagem. Não seria, por isso, grande motivo de choque menorizar um grande escritor quando a sua arte já estava, por si, a ser menorizada. É só com a secularização e com uma certa perda de crença no valor salvífico da religião que a literatura, independente de moral ou religião, começa a ganhar algum estatuto existencial. O cânone literário dá assim conta da valorização do estético como um valor que redime o Homem, de tal modo que aqueles que se atrevem a contestá-lo têm um tratamento quase herético. A modernidade pode ter dispensado o Livro Sagrado, mas não deixou de criar a sua própria biblioteca de livros sagrados.

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