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Como começou o caso das viagens?

Em agosto de 2016, a revista Sábado revelou que o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Fernando Rocha Andrade, viajou a convite da Galp para assistir a jogos do Euro-2016 em França. Com ele viajaram outros dois secretários de Estado, João Vasconcelos (Indústria) e Jorge Oliveira (Internacionalização).

No início de julho de 2017, os três secretários de Estado anunciaram a sua exoneração e solicitaram ao Ministério Público a sua constituição como arguidos num processo relacionado com as viagens pagas pela Galp. A Procuradoria Geral da República anunciou entretanto ter aberto um inquérito, sendo já público que foram constituídos 11 arguidos. No caso dos secretários de Estado a serem investigados, deverá estar em causa o crime de recebimento indevido de vantagem.

Em finais de julho, o Observador noticiou que alguns responsáveis políticos viajaram até à sede da Huawei na China, a convite de empresas privadas — o que poderia configurar o mesmo crime investigado pela PGR no caso Galp. Entretanto, o Expresso revelou que vários funcionários do Estado, dos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde e da Autoridade Tributária foram à China visitar a Huawei, pagos pela NOS.

Esta semana, o Observador avançou que vários funcionários terão ido a um evento organizado pela Oracle em São Francisco, também com viagens pagas por empresas privadas. O evento incluía momentos de lazer como um concerto dos Aerosmith.

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Quem são os atores públicos envolvidos?

Há vários, nos diferentes casos.

Caso Galp:

  • Três ex-secretários de Estado: Fernando Rocha Andrade (Assuntos Fiscais), João Vasconcelos (Indústria) e Jorge Oliveira (Internacionalização), todos constituídos arguidos;
  • Um deputado do PSD, Cristóvão Norte, também constituído arguido;
  • Dois presidentes de Câmara: Nuno Mascarenhas do PS (Sines) e Álvaro Beijinha da CDU (Santiago do Cacém), que não foram constituídos arguidos.

Caso Huawei:

  • Nuno Barreto, adjunto do secretário de Estado das Comunidades, entretanto exonerado;
  • Sérgio Azevedo, deputado do PSD;
  • Paulo Vistas, presidente independente da câmara municipal de Oeiras;
  • Luís Newton, presidente da junta de freguesia da Estrela pelo PSD;
  • Ângelo Pereira, vereador do PSD na câmara de Oeiras;
  • Paulo César, vereador do PS na câmara de Odivelas;
  • Rodrigo Gonçalves, vice-presidente do PSD/Lisboa;
  • Nuno Custódio, vice-presidente do PSD/Oeiras;
  • João Mota Lopes, ex-diretor do Instituto de Informática da Segurança Social (IISS) e militante do PSD;
  • Artur Trindade Mimoso, vogal executivo do conselho de administração dos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS);
  • Nuno Lucas, Rui Gomes, Ana d’Avó Maurício, Rute Belchior, todos quadros dos SPMS;
  • Carlos Santos, chefe da equipa multidisciplinar de 2.º nível do Núcleo de Sistemas Distribuídos da Autoridade Tributária (AT).

Caso Oracle:

  • Carlos Santos, chefe da equipa multidisciplinar de 2.º nível do Núcleo de Sistemas Distribuídos da Autoridade Tributária que também foi à China na viagem relacionada com a Huawei e que está a ser investigado pela própria AT;
  • Diogo Reis, da equipa da Plataforma de Dados da Saúde dos SPMS;
  • Francisco Baptista, chefe da Equipa Multidisciplinar de Sistemas e Produção (EMSP) da Secretaria-Geral do Ministério da Administração Interna;
  • Carlos Oliveira e João Mota Lopes, diretores do IISS. Mota Lopes também foi à China no processo ligado à NOS e à Huawei;
  • Pedro Fonseca e Nuno Guerreiro, da Caixa Geral de Depósitos;
  • Nuno Cardoso, diretor de serviços de Tecnologias de Informação da TAP;
  • Maria Ermelinda Carrachás, secretária-geral do Ministério da Economia;
  • Pedro Miranda e Raquel Vilas dos SPMS
  • Artur Mimoso, Ana Maurício d’Avó, António Alexandre, e Sara Carrasqueiro, todos dos SPMS (as viagens e estadias deste quatro elementos foram pagas pelo Estado);
  • José Moura, do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos de Justiça (viagem e estadia pagos pelo Estado);
  • Vítor Costa, chefe de equipa multidisciplinar do MAI;
  • Guilherme Batista, coordenador de sistema de informação da Câmara da Moita;
  • José Carlos Nascimento, professor na Universidade do Minho;
  • Luís Filipe Pereira, ex-ministro da Saúde e presidente do Conselho Económico e Social no momento da viagem.
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Quais são as empresas em causa?

No caso das viagens ao Euro-2016, falamos apenas da Galp. Relativamente às viagens à China, temos o envolvimento da Huawei e da sua parceira NOS, que pagaram as viagens e ou estadia. A Huawei chegou a fazer um comunicado a dizer que não pagou quaisquer viagens. Mas a “hospitalidade” em território chinês terá ficado à sua responsabilidade.

Relativamente à ida ao evento em São Francisco, a Oracle Corporation terá pago os passes de acesso ao evento e repartido as despesas de deslocação com várias empresas suas parceiras como: a Timestamp, a Normática, a IDW e a ITEN Solutions.

Há ainda a registar o envolvimento da Informantem, cujo presidente do seu conselho de administração, Henrique Muacho (militante do PSD), esteve por detrás do convite a vários políticos à sede da Huawei e fez também parte dos convidados privados que foram ao evento da Oracle em São Francisco.

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O que esperam ganhar as empresas com este tipo de convites?

Contactada pelo Observador em julho, a Huawei justificou o facto de receber várias delegações “de entidades públicas e privadas” na sua sede com o objetivo de demonstrar como “potenciar as redes de telecomunicações”, tendo em conta “os planos nacionais e locais de desenvolvimento de tecnologias de informações e comunicações”. A empresa chinesa é conhecida pelas suas táticas agressivas, por vezes referidas como uma aproximação “holística, numa estratégia do tipo Arte da Guerra”, o tratado militar chinês que aconselha a conhecer bem os inimigos.

Quanto à Galp, a empresa explicou que o pagamento das viagens é um tipo de iniciativa “comum e considerado aceitável no plano ético das práticas empresariais internacionais” e reforçou que o seu único objetivo era o de “fomentar o espírito de união em torno da Selecção Nacional, cujos valores se coadunam com os da marca Galp”.

Luís Sousa, investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e especialista em combate à corrupção, define ao Observador o objetivo das ofertas de viagens por parte de empresas privadas como o de “tornar mais pessoal a relação entre o decisor de uma área que diz respeito à empresa”, ressalvando que a escolha de enviar convites a pessoas que ocupam cargos como o de diretor de compras ou de diretor de comunicação não é por acaso. “Há o poder executivo, mas também há o poder de promoção e de influência.”

Para o especialista, o uso destas táticas com titulares de cargos públicos explica-se pelo facto de o mercado público ser “um mercado cobiçado, mas escasso”. “A concorrência é muita e as prendas são uma forma de ganhar um competitive edge sobre a concorrência”, diz, explicando que o objetivo é conseguir proveitos a longo prazo. “Uma pessoa não se vende por uma caixa de robalos, uma viagem a Paris ou a um jogo de futebol, mas este contínuo apaparicar acaba por facilitar uma série de contactos, alertas ou vistas grossas sobre determinados assuntos”.

Já o jurista Paulo Otero, professor catedrático de Direito Administrativo e Constitucional, crê que estas são práticas legítimas das empresas. “Elas fazem o que todas as empresas procuram fazer: influenciar decisores”, declara. “O problema está nos decisores que se deixam capturar por essas situações.”

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Quais as justificações dos políticos e dos quadros do Estado para aceitarem?

O antigo secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Fernando Rocha Andrade, declarou em agosto de 2016 (quando foi conhecido que teria viajado ao Euro 2016 a convite da Galp) que encarava “com naturalidade e dentro da adequação social a aceitação deste tipo de convites”, reforçando não acreditar que houvesse “um conflito de interesses” pelo facto de tutelar a Autoridade Tributária, que tinha um contencioso com a Galp. Acabaria por se demitir, juntamente com os outros secretários de Estado que viajaram a convite da mesma empresa, em julho deste ano.

No caso das viagens à China relacionadas com a Huawei, o deputado Sérgio Azevedo, do PSD, justifica-se dizendo que considera que agiu “em conformidade”, “quer no plano ético quer no plano da licitude”. “Como aliás sempre o fiz no Parlamento ou na minha vida profissional anterior. Caso contrário não teria tornado pública a minha visita logo no momento da sua realização”, acrescentou.

Já Ângelo Pereira, vereador da câmara municipal de Oeiras e candidato a presidente pelo PSD nas eleições de 1 de outubro, diz que não há “nenhuma ilegalidade” no convite, já que foi “à procura de soluções para melhorar a cidade” — e deu como exemplos “soluções de sensores para os caixotes do lixo, sensores de mediação para poluição do ar e de fluxos de trânsito”. Paulo Vistas, presidente da mesma autarquia, disse não ver “nenhum problema ético” na viagem, que considera “normal no quadro das relações institucionais”, frisando até que tem interesse em acolher a Huawei no seu concelho. Paulo César Teixeira, vereador do PS na câmara de Odivelas, afirmou também que “não se vislumbra qualquer problema de ordem ética”.

Rodrigo Gonçalves, vice-presidente do PSD/Lisboa, repetiu a mesma fórmula, dizendo não ver “nenhuma incompatibilidade legal ou ética”. Já Nuno Custódio, vice-presidente do PSD/Oeiras, disse ter aceitado o convite porque era “uma experiência enriquecedora” e ressalvou que tirou férias para a viagem.

João Mota Lopes, antigo dirigente do Instituto de Informática da Segurança Social, confirmou que fez a viagem à China depois de todo o conselho diretivo ter decidido aceitar o convite e nomeá-lo, como é habitual quando surgem convites — alguns aceites pelo Instituto, “quando há interesse”. O ministro aprovou.

Já Nuno Barreto, adjunto do secretário de Estado das Comunidades que também visitou a sede da Huawei, defendeu-se dizendo que viajou “a título pessoal” e “no gozo do período de férias”, reforçando que a viagem surgiu “a convite de um amigo”. Barreto acabaria por ser exonerado a 10 de agosto.

Quanto aos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS), o organismo realçou a necessidade de “adquirir e partilhar conhecimentos” e apontou um resultado concreto dessa viagem: a criação de um centro de telemedicina, “fruto dessa viagem de trabalho”.

Outra reação oficial foi a da TAP, cujo diretor do Serviço de Tecnologias de Informação, Nuno Cardoso, participou no evento da Oracle em São Francisco em 2014. “A TAP participa em vários encontros relacionados com o negócio do transporte aéreo, em várias partes do mundo, por iniciativa própria e/ou a convite de várias entidades públicas e/ou privadas”, responde a transportadora.

Contactado pelo Observador, o Ministério da Economia justificou a ida de um dos seus quadros ao evento da Oracle em 2016 como sendo “compatível com as funções da dirigente pelo seu relevante interesse do ponto de vista da informação e formação na área das Tecnologias de Informação e Comunicação”.

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Que evento da Oracle é este e o que é que lá se vai fazer?

Foram cinco altos funcionários do Estado, entre uma delegação de 53 portugueses que incluía também três funcionários de empresas do Setor Empresarial do Estado e dois de empresas participadas pelo Estado, que se deslocaram a São Francisco, EUA, entre 28 de setembro e 2 de outubro de 2014, para participar no Oracle Open World 2014. Outro grupo de pelo menos 65 portugueses viajou em 2016. O evento apresenta-se como “a mais importante conferência de tecnologia e negócios dos últimos 20 anos”, recebendo “dezenas de milhares de participantes” de todas as partes do mundo.

Entre os participantes naquela conferência encontram-se empresários de vários ramos da tecnologia e inovação, mas também representantes de governos de países de todo o mundo. Ao longo do evento, há “mais de 2.500 sessões educativas, conduzidas por mais de 2.000 clientes e parceiros que partilham as suas experiências na primeira pessoa”. Além de dezenas de workshops, o evento conta com uma espécie de “feira tecnológica”, em que centenas de empresas tecnológicas exibem novos produtos, sobretudo na área do desenvolvimento da cloud, uma das grandes áreas de especialização da Oracle.

Mas o evento não é apenas negócio: à noite, há concertos para os participantes que pagaram o bilhete completo — que pode chegar aos 2.650 dólares (2.200 euros) se for comprado no local. No ano da polémica visita da delegação portuguesa a convite da Oracle e de empresas parceiras, os participantes tiveram oportunidade de assistir a um concerto dos Aerosmith. Este ano, o cartaz inclui nomes como The Chainsmokers e Ellie Goulding.

A participação de elementos ligados ao Ministério da Saúde de Portugal tem como objetivo procurar “mais conhecimento e informação, de forma a continuar a contribuir para melhorar o sistema de saúde português”. Isto mesmo pode ler-se numa nota publicada no site dos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde que dá conta da participação portuguesa na edição de 2016 do certame.

“Mais uma vez, a SPMS acompanha as recentes tendências tecnológicas, à escala mundial, considerando que a inovação aliada à tecnologia e a uma estratégia diferenciadora permitem desenvolver e maximizar a criação de valor numa organização e, por outro lado, uma melhor e mais eficiente tomada de decisão”, lê-se na nota, que destaca as “várias palestras e sessões” do congresso “em temáticas como as novas tendências da tecnologia, nomeadamente cloud computing como estratégia de melhoria do desempenho, segurança e custo dos sistemas, ou o futuro das bases de dados e da infraestrutura na cloud”.

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Huawei. O que há para ver na “Silicon Valley chinesa”?

As viagens à China tiveram como objetivo a sede da Huawei, onde a tecnológica chinesa desenvolve os seus produtos. Segundo confirmou a NOS, empresa parceira da Huawei que pagou as despesas da deslocação de junho de 2015 que envolveu quadros do Ministério da Saúde, a viagem contou com visitas a dois complexos tecnológicos de topo: em primeiro lugar, o hospital de Zhang Zhou, “considerado uma referência internacional”, e em segundo lugar a sede da Huawei, em Shenzhen, “onde foram organizados vários workshops sobre as mais recentes inovações tecnológicas na área da saúde”.

A sede fica em Shenzhen, “uma espécie de Silicon Valley chinesa, onde estão sediadas as maiores empresas tecnológicas do país, como a Tencent e a ZTE”, descreve ao Observador uma pessoa que já visitou as instalações da Huawei. O edifício principal — a Huawei está sediado num campus com vários edifícios — “é enorme e moderno, horizontal, contrasta com o resto da cidade, com prédios muito altos”.

O edifício está incluído num campus com mais de 200 hectares onde trabalham mais de 60 mil pessoas diariamente. Entrar lá é raro — só mesmo com convite e quem por lá passa até assina um acordo de confidencialidade comprometendo-se a não divulgar os produtos que vê. O acesso é limitado, e, claro, sempre acompanhado por responsáveis da empresa. As visitas têm uma dimensão mais turística do que propriamente tecnológica e os espaços visitados são pensados para impressionar quem por lá passa.

Os corredores são “espaçosos” e estão recheados de serviços para os funcionários. “Desde a típica máquina de café a um bar ou a mesas com talhadas de melancia para refrescar. Há ainda uma loja, onde se vendem gelados, e um restaurante chinês requintado.” Além de salas de reunião e de formação — aparentemente normais mas com recurso a tecnologia sofisticada — os visitantes passam ainda por um museu que mostra a evolução da empresa, mas não têm acesso aos laboratórios onde são concebidos os produtos tecnológicos da empresa. Mais, só mesmo para quem vai com projetos concretos na mala para reunir com responsáveis da empresa.

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Quais são as regras no Estado para aceitar ofertas? E o que diz a lei?

Vários organismos públicos, como a Autoridade Tributária, têm códigos de conduta que definem regras para o recebimento de ofertas.

A um nível mais geral, o Código do Procedimento Administrativo analisa o que deve ser feito pela Administração Pública em casos em que se possa “duvidar seriamente da imparcialidade” de funcionários da Administração Pública e de quaisquer pessoas no exercício de poderes públicos. O Código, no artigo 73.º, prevê que possa haver dúvida dessa imparcialidade em casos onde tenha havido “recebimento de dádivas” pelo titular do órgão e que, nesses casos, o titular deve pedir dispensa em qualquer ato futuro onde essa suspeição de parcialidade possa estar presente. Ou seja, em decisões que envolvam, por exemplo, a empresa que ofereceu a tal dádiva, o funcionário deve pedir escusa.

Tal não significa, contudo, que seja obrigado a fazê-lo. Como explicou ao Observador o jurista Paulo Saragoça da Matta, “é uma decisão de consciência”.

“Não é o facto de receber algo que determina que se fica logo inibido de tomar decisões num processo”, diz o advogado. “Diria que por regra considerar-se-á impedido, mas não quer dizer que em cargos em concreto não mantenha integralmente a sua imparcialidade”. O que fica sem dúvida em causa é a aparência de imparcialidade.

Em última instância há o Código Penal, que prevê o crime de “recebimento indevido de vantagem”, aplicável a todos os funcionários do Estado, e a Lei dos Crimes de Responsabilidade dos Titulares de Cargos Públicos. Ambas estipulam (artigo 372.º e artigo 16.º, respetivamente) que qualquer funcionário ou titular de cargo público em exercício de funções que aceite “vantagem patrimonial ou não patrimonial que não lhe seja devida” é punido com “pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias”. Desde a alteração legislativa de 2010 que deixou de ser necessário comprovar que houve uma contrapartida da parte do agente político para haver crime. No entanto, a lei prevê igualmente que estão isentas da pena “as condutas socialmente adequadas e conformes aos usos e costumes”.

A lei não explica o que considera ser uma “conduta socialmente adequada”, mas Saragoça da Matta oferece algumas hipóteses de interpretação, como a definição de valor diminuto estabelecida no código penal (uma unidade de conta, ou seja, 102€). “Mas o critério que define o que é socialmente aceite é a forma como se olha para o ato”, explica, dando o exemplo da oferta de um livro escrito pelo próprio ou de uma caixa de bombons como ofertas socialmente aceites. “Se é um juízo subjetivo? É verdade”, admite, dizendo que caberá ao Ministério Público justificar em despacho a decisão de abrir uma investigação.

Para além de tudo isto, há ainda o Código de Conduta aprovado por este Governo no ano passado, que impõe a proibição de receber prendas de valor superior a 150€ por parte de membros do governo e dirigentes da Administração Pública.

Contudo, o próprio Código de Conduta do governo admite exceções à proibição de aceitar convites com “valor estimado superior a 150€”, nos casos de “participação em cerimónias oficiais, conferências, congressos, seminários, feiras ou outros eventos análogos” que “correspondam a usos sociais e políticos consolidados” ou “quando exista um interesse público relevante”, bem como “quando os membros do Governo sejam expressamente convidados nessa qualidade, assegurando assim uma função de representação oficial”.

As sanções previstas no Código de Conduta do Governo são apenas políticas e não legais.

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Quais as regras específicas da Autoridade Tributária?

No que respeita à Autoridade Tributária (AT), as normas são ainda mais apertadas, uma vez que o organismo tem um código próprio que previne o recebimento de ofertas que possam pôr em causa a imparcialidade dos seus funcionários, mesmo que apenas de forma aparente. O Código de Conduta dos Trabalhadores da AT — organismo do qual faz parte Carlos Santos, que terá ido à China na viagem ligada à Huawei e a São Francisco com a Oracle — estabelece que os seus trabalhadores não devem “aceitar presentes, hospitalidade ou quaisquer benefícios que, de forma real, potencial ou meramente aparente, possam influenciar o exercício das suas funções”.

O código da Autoridade Tributária é, aliás, mais antigo do que o Código de Conduta do Governo. Contactada pelo Observador sobre a situação de Carlos Santos, fonte do Ministério das Finanças recusou comentar o assunto até à conclusão do inquérito que está a ser desenvolvido pela Inspeção Geral das Finanças, remetendo os esclarecimentos para o Código de Conduta do Governo. No entanto, a mesma fonte sublinhou precisamente que as normas de conduta já existiam para a AT desde julho de 2015, remetendo para o estrito Código de Conduta da AT.

“É a aparência que está em causa nestes casos”, diz João Paulo Batalha, presidente da organização Transparência e Integridade (TIAC). “Quando um funcionário da AT vai à sede da Oracle ver um concerto dos Aerosmith e depois um cidadão que vá ao site da AT é obrigado a usar um browser compatível com software da Oracle, é claro que pode haver uma perceção de uma relação promíscua”, diz o responsável da TIAC.

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Há uma distinção entre políticos e funcionários do Estado?

Legalmente, não. O crime de “recebimento indevido de vantagem” é avaliado pelo Ministério Público como sendo passível de ocorrer com qualquer titular de cargo público — razão pela qual o DIAP abriu uma investigação aos políticos que viajaram para a China (como o deputado Sérgio Azevedo, o presidente de câmara Paulo Vistas e o presidente de junta Luís Newton, entre outros), mas também aos quadros e técnicos dos ministérios, ordenada pela Procuradoria Geral da República.

Contudo, alguns especialistas ouvidos pelo Observador creem que pode haver uma dimensão ética agravada para responsáveis políticos. Paulo Otero ressalva que no caso dos agentes políticos pode não haver normas administrativas tão apertadas (como no caso do Código do Procedimento Administrativo, que prevê a hipótese de escusa no futuro), mas que estes têm igualmente a dimensão ética:

O exercício de funções públicas não é um privilégio, é um serviço. Isso significa que tem limitações e não prerrogativas ou direitos”, esclarece o jurista.

João Paulo Batalha, presidente da organização Transparência e Integridade (TIAC), reforça essa ideia, dizendo que, embora ambos tenham “um mandato para defender o interesse público”, os agentes políticos têm uma relação mais próxima com os cidadãos, o que exige “mecanismos de prestação de contas mais imediatos, nomeadamente com a publicação da sua agenda”.

No caso concreto das viagens à China e a São Francisco, Batalha diz que “é mais incompreensível um presidente de câmara ir à China ver a fábrica da Huawei do que um funcionário público que pode ter um interesse de trabalho. Desse ponto de vista há aqui uma diferenciação entre políticos que vão fazer pouco mais do que turismo e os funcionários”.

Ressalva, contudo, que a justificarem-se essas viagens para funcionários do Estado “nunca deveriam ser custeadas por empresas privadas”, mas sim pelo próprio organismo público interessado.

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Afinal quem pagou as viagens e as estadias?

China

Ao fim de um mês sobre as histórias das viagens à China publicadas pelo Observador, a Huawei resolveu desmentir que tivesse pago deslocações. A empresa chinesa disse-o claramente no que toca às viagens aéreas, não sendo clara no que se refere às estadias. Contudo, diversos testemunhos vão no sentido contrário. Quando o Observador publicou os primeiro artigos desta investigação, os primeiros visados como Sérgio Azevedo, deputado do PSD, Ângelo Pereira, vereador do PSD em Oeiras, Paulo Vistas, presidente da mesma câmara, ou Rodrigo Gonçalves, dirigente do PSD, confirmaram ao Observador que tinham feito a viagem e que todos os custos tinham sido suportados pela Huawei.

Mais tarde, o adjunto do secretário de Estado das Comunidades, Nuno Barreto, que também fez uma viagem paga pela empresa tecnológica, admitiu ao Observador que a Huawei pagou a estadia — hotel e refeições — mas que a viagem de avião foi paga do seu próprio bolso.

Apesar dos vários depoimentos, a Huawei tem insistido que não pagou nenhuma viagem à China. A primeira certeza parece ter chegado com a revelação mais recente — a da deslocação de quadros do Ministério da Saúde à China, em junho de 2015, para visitar um hospital de topo e a sede da Huawei. A NOS, enquanto empresa parceira da Huawei, já veio confirmar que pagou os bilhetes de avião para as deslocações. Quanto às estadias na China, tudo aponta para que tenha sido efetivamente a Huawei, quer diretamente, quer através de empresas parceiras. Até aqui, não houve um desmentido concreto relativamente ao pagamento de estadias em hotéis na China.

São Francisco

No que diz respeito às viagens a São Francisco ao evento anual da Oracle, há três despesas a ter em conta. Sobre uma há certezas: o ingresso no evento Oracle Open World, para o qual as delegações foram convidadas e cujo preço pode chegar aos 2.200 euros, foi pago pela própria Oracle. Já as viagens e estadias terão sido pagas por empresas parceiras da Oracle — pequenas e médias empresas portuguesas que são clientes da Oracle, que lhes fornece materiais e software, e que têm contratos públicos com o Estado português. Terá sido nessa qualidade — de clientes e parceiras — que essas empresas puderam levar ao evento da Oracle vários convidados, em que se incluem cinco altos quadros do Estado e ainda funcionários de empresas públicas e participadas pelo Estado.

Contactadas pelo Observador, as várias empresas portuguesas que convidaram os políticos portugueses para ir a São Francisco não se mostraram disponíveis para prestar esclarecimentos. Na Timestamp, que convidou Carlos Santos (da Autoridade Tributária), Diogo Reis (dos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde) e Francisco Baptista (da Secretaria Geral da Administração Interna), a administração está de férias e não havia, esta terça-feira, ninguém disponível para falar sobre o assunto pela empresa.

Já na Normática (que convidou Carlos Oliveira e João Mota Lopes, ligados ao Instituto de Informática da Segurança Social), na IDW (que levou dois quadros da Caixa Geral de Depósitos) e na ITEN Solutions (que levou o diretor de serviços de Tecnologias de Informação da TAP), as administrações e os gabinetes de relações públicas das três empresas não se mostraram disponíveis para responder às questões do Observador.

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Quem são os parceiros que pagaram as viagens e que negócios têm o Estado?

Os parceiros da Oracle que terão pago as viagens a São Francisco são pelo menos quatro empresas portuguesas, com sede na região da Grande Lisboa, que são habitualmente contratadas pelo Estado para prestação de serviços na área da informática, comunicações e tecnologias de informação.

A primeira é a Timestamp, empresa de sistemas de informação que implementa soluções de software e que tem até um acordo com o Estado para licenciamento de programas informáticos para a administração pública. A Oracle é um dos principais parceiros e fornecedores da Timestamp, que, de acordo com o Portal Base, tem até ao momento 234 contratos com o Estado, tendo já faturado mais de 24 milhões de euros em contratos públicos. Contactada pelo Observador para esclarecer as relações comerciais com a Oracle e o esquema de pagamento das viagens a São Francisco, a Timestamp mostrou-se indisponível para responder às questões.

No caso aparece também a Normática, empresa de tecnologias de informação que também se dedica à implementação de sistemas e ao fornecimento e licenciamento de programas informáticos. A empresa já assinou 664 contratos com o Estado e já faturou mais de 67 milhões de euros. Também após contacto insistente por parte do Observador, ninguém na empresa se mostrou disponível para explicar o pagamento das viagens.

Também a IDW, que no ano passado estabeleceu uma parceria com a Oracle, terá sido responsável pelo convite a figuras ligadas ao Estado. A empresa, que se dedica à implementação de vários tipos de soluções tecnológicas provenientes de diversos fornecedores, já celebrou 164 contratos com o Estado e faturou cerca de 10 milhões de euros em contratos públicas. Também na IDW ninguém se mostrou disponível para falar ao Observador sobre o caso.

Por fim, a ITEN Solutions, uma outra empresa na área da informática, terá convidado Nuno Cardoso, então diretor de serviços de Tecnologias de Informação da TAP, a participar no evento, tendo pago a viagem. A empresa, que já fez 1.226 contratos com o Estado e já faturou mais de 106 milhões de euros em contratos públicos, não prestou quaisquer esclarecimentos por telefone ao Observador, pedindo que fossem feitas perguntas por escrito. Até agora, não chegaram quaisquer respostas ao Observador.

A Oracle tem um total de 246 contratos diretos com variadíssimas entidades públicas, no valor de 22,8 milhões de euros registados no Portal Base. Não há contratos diretos com a Huawei registados no Portal Base.

O caso da NOS está explicado na pergunta número 15.

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Quais são as regras relativamente a ofertas nos privados?

As empresas privadas têm muitas vezes regras de conduta apertadas sobre ofertas — seja no seu recebimento por parte dos funcionários, seja na atribuição a titulares de cargos públicos — sendo por vezes até mais detalhados do que os códigos de conduta de organismos públicos.

A Oracle, por exemplo, estipula nas suas normas internacionais que essas ofertas devem ser feitas sem intenção de corromper e que não devem ser de valor elevado. Acrescenta ainda o seguinte: “Os empregados que queiram aprovação ou que aprovem gastos com refeições, bebidas ou entretenimento devem usar de discrição e cuidado para garantir que esses eventos são razoáveis e modestos no seu custo, não são descabidos ou extravagantes, são justificados por um propósito de negócios legítimo e não são oferecidos de forma imprópria para influenciar o julgamento negocial do receptor.

14

O convite da NOS viola as regras internas da empresa?

Depende de como for interpretado o convite para a viagem. O Código de Ética da NOS é claro no que toca a “repudiar qualquer prática de corrupção ou suborno na sua forma ativa ou passiva”. No entanto, no que toca à oferta de presentes a entidades externas, abre a porta a interpretações ao sublinhar que “a oferta de bens, serviços ou quaisquer vantagens” é admissível “desde que, cumulativamente, seja efetuada em nome da empresa, esteja relacionada com a sua atividade e corresponda aos usos ou às práticas habituais do setor”.

Contactada pelo Observador, fonte oficial da NOS recusou comentar a notícia enquanto decorrerem os procedimentos internos de apuramento dos factos, remetendo para o esclarecimento enviado esta semana às redações. Nessa nota, lê-se que “a política e regras em vigor na NOS não preveem a possibilidade de a empresa suportar, mesmo que parcialmente, custos de deslocações que não os dos seus próprios colaboradores” — o que parece indicar uma aparente contradição entre as viagens à China e as normas internas da empresa.

No comunicado, a empresa confirma mesmo que pagou, em junho de 2015, a viagem à China de 14 pessoas — das quais apenas cinco são colaboradores da NOS. “O enquadramento deste pagamento encontra-se ainda a ser apurado”, lê-se na nota. Por isso mesmo, “a Comissão Executiva da NOS prontamente decidiu apurar internamente o enquadramento e detalhe de um eventual envolvimento da empresa na referida viagem”.

15

Quais as adjudicações do Ministério da Saúde à NOS depois da viagem?

No Portal Base (onde estão registados os contratos feitos por organismos públicos) há registo de doze contratos celebrados entre a NOS Comunicações e os Serviços Partilhados do Ministério da Saúde. Destes, dois foram feitos antes de junho de 2015 (data da viagem à China) e dez foram feitos depois. No total, a NOS ganhou 532.684 euros em contratos com o Estado — 48.780 euros relativos a contratos anteriores à viagem e 483.904 euros posteriormente.

A NOS apenas foi criada em maio de 2014 (após a fusão da ZON com a Optimus). É impossível afirmar que tenha sido por causa da realização da viagem de junho de 2015, mas houve um aumento significativo no número de adjudicações feitas à NOS depois dessa deslocação, quando comparado com o período anterior: o número subiu de apenas dois contratos no período anterior à viagem para dez nos dois anos seguintes.

Entre os contratos registados encontram-se a aquisição de vários serviços de telecomunicações para o Sistema Nacional de Saúde. O mais recente, por exemplo, diz respeito à aquisição de um sistema de interactive voice response (sistema de atendimento automático, à base de áudios pré-gravados, que orientam o utilizador que liga para o apoio telefónico) para o call center do SPMS. Outro refere-se a serviços de auditoria das redes locais do Sistema Nacional de Saúde. Há ainda aquisição de serviço de alojamento informático, manutenção de redes de comunicações e compra de software.

Esta é a lista completa de contratos entre a NOS Comunicações e os SPMS desde junho de 2015:

  • 18 de setembro de 2015: aquisição de serviços de configuração de uma solução interactive voice response – 41.055,00 €;
  • 9 de maio de 2016: aquisição de circuito principal e outro de backup em tecnologia MPLS para interligação do SNS ao Ponto de Troca de Tráfego (PTT) da eSPap;
  • 20 de julho de 2016: aquisição de serviços de gestão e operação de plataforma de colaboração de atendimento da SPMS, EPE – 60.000,00 €;
  • 22 de agosto de 2016: aquisição de serviços de alojamento de quatro bastidores – 53.450,00 €;
  • 24 de agosto de 2016: aquisição de plataforma eletrónica para registo de pedidos de viagem e alojamento – 34.925,00 €;
  • 28 de setembro de 2016: aquisição de serviços de interligação do datacenter da SPMS com a Cloud – 74.400,00;
  • 2 de fevereiro de 2017: aquisição de serviços de manutenção de solução para centro de suporte da SPMS, EPE – 9.900,00 €;
  • 20 de fevereiro de 2017: aquisição de serviços de auditoria às redes locais das entidades do Sistema Nacional de Saúde (SNS) – 74.990,00 €;
  • 18 de abril de 2017: aquisição de serviços de manutenção de solução para o Centro de Suporte da SPMS, EPE – 9.900,00 €;
  • 31 de maio de 2017: aquisição de serviços de interactive voice response e comunicações de apoio ao serviço de call center do centro de suporte da SPMS, EPE – 116.664,00 €