Os valores hedonistas, expressos através do culto do corpo, da beleza, do bem-estar e da saúde, têm cada vez mais importância, e não param de crescer as ofertas comerciais que exploram este desejo da sociedade. Basta olharmos para as inúmeras dietas publicitadas, um pouco por todo o lado, que prometem melhor saúde e mais longevidade. Num ímpeto reformista, o Estado pretende agora controlar as calorias dos cidadãos, privando-os de pequenos prazeres alimentares. O governo, através de despacho, criou uma série de restrições à venda de produtos alimentares nos bares do SNS, elaborando para o efeito um autêntico Index com os alimentos proibidos: hambúrgueres, cachorros quentes, pizas ou lasanhas, rissóis, croquetes, pastéis de bacalhau, etc.
Esta iniciativa legislativa é excessiva, infantiliza os portugueses, e tem no seu espírito um fundamentalismo perigoso: obriga a que sejamos todos saudáveis, através do cumprimento de um modelo alimentar. Com esta imposição o homem fica impedido de usufruir de alguns prazeres alimentares; de tal forma impedido, que deixa de ser humano. Ora, este paternalismo de Estado conflitua com a liberdade individual. Neste caso, o Estado retira aos cidadãos a liberdade de, num espaço público e sem prejudicar terceiros, comer um croquete ou um pastel de massa folhada.
Vivemos num tempo confuso e repleto de contradições. Alternamos entre um Estado que legisla em nome de um homo indvidualis — que decide o que fazer da sua própria vida, liberto das imposições morais coletivas —, e um Estado que legisla em sentido oposto, publicando uma lista de alimentos proibidos, pondo de parte a liberdade individual. Afinal em que é que ficamos? Permitimos, em nome da liberdade individual, algumas das pequenas satisfações da vida ou impomos aos portugueses uma verdadeira vida monástica dominada por renúncias alimentares?
Recentemente foram denunciados vários casos de refeições servidas nas escolas a crianças em más condições e sem o mínimo de qualidade. É justamente nestes casos, em que existem interesses económicos e corporativos de empresas do sector, que o Estado tem de intervir e zelar pela alimentação de quem não tem alternativa. Torna-se necessário garantir o mínimo de qualidade das refeições fornecidas às crianças e também nos hospitais aos doentes, pois ambos correspondem a grupos fragilizados. E poderíamos continuar com mais exemplos, para chegarmos à conclusão de que o Estado perdeu uma certa racionalidade ética.
Do meu ponto de vista, aquilo que está aqui em causa não é a necessidade de defender bons hábitos alimentares e a educação da população nesse sentido. Julgo que este aspeto é consensual. A procura de uma vida saudável através da alimentação, infelizmente já há muito tempo que deixou de ser uma recomendação com bases científicas para se tornar numa autêntica religião com fiéis seguidores. É preciso denunciar a idolatria da saúde e do bem-estar, o fundamentalismo em redor de uma vida castradora, cheia de hábitos saudáveis, mas que conduz todos os anos milhares de pessoas à depressão. Muitas delas são pessoas normais que, por levarem uma vida profissional e familiar difícil e atribulada, nem sempre conseguem alimentar-se como gostariam ou ir ao ginásio com a frequência desejada. Esta idolatria do corpo, e a obsessão pela saúde e pelo bem-estar, está a criar em muitas pessoas sentimentos de culpa irracionais e que podem conduzir não apenas a um sentimento coletivo de frustração, com ainda a algumas doenças psiquiátricas.
Precisamos urgentemente de mais bom senso na vida social e política. Não faz mal à saúde comer de vez quando um croquete e um pastel de bacalhau. O que é perigoso são os excessos, sejam eles alimentares ou legislativos.
Médico Psiquiatra