Os sindicatos da TAP estão a fazer um favor a todos quantos defendem a privatização da empresa. Greve atrás de greve, levam os cidadãos a sentirem-se exasperados. Como utentes e, também, como accionistas – mais exactamente como contribuintes accionistas, pois a TAP ainda é uma empresa pública.

Na verdade, a cada nova greve fica mais claro que aquilo que a TAP oferece de diferente não é um serviço único e insubstituível, é mais depressa a instabilidade de uma empresa tomada como refém pelos seus trabalhadores. Ou pelos seus sindicatos. Esta greve de 27 a 30 de Dezembro – greve que continua marcada à hora a escrevo este texto –, de prejuízo máximo para os utentes pois coincide com um período de grande actividade e de muita sensibilidade para os passageiros, só tem, de resto, um objectivo: procurar manter o controlo que hoje os líderes sindicais têm sobre a empresa e o seu futuro. Quem o diz não sou eu, mas o insuspeito Vital Moreira, que escreveu recentemente que “a TAP constitui desde há muito uma espécie de condomínio entre o Estado e os sindicatos, que exercem um eficaz poder de veto na gestão da empresa.” O custo deste condomínio foi durante muitos anos pago pelos contribuintes e só não continua a ser porque as regras europeias da concorrência o impedem.

Este ponto é absolutamente central nesta discussão: até à década de 1980 a aviação era, sobretudo na Europa, uma actividade a que quase só os Estados se dedicavam; com a desregulação iniciada nessa década, a aviação tornou-se uma indústria onde surgiram inúmeras novas empresas, novos processos e, consequentemente, novos preços e novos serviços. A democratização do transporte aéreo não foi obra de empresas estatais, mas da concorrência entre empresas públicas, empresas privatizadas e novas empresas. Neste processo foram desaparecendo as antigas companhias estatais “de bandeira”: hoje a Lufhtansa, a British, a Iberia, a própria Air France são empresas onde a maioria ou a totalidade do capital é privado. Isto quando os processos de privatização puderam ser levados por diante, pois também há histórias trágicas de companhias “de bandeira” que pura e simplesmente faliram, como a velha Allitalia ou a belga Sabena.

No caso da nossa TAP há quase 20 anos que se fala da sua privatização, e desde sempre que esta tem sido combatida exactamente com o mesmo tipo de argumentos dos que no Reino Unido, na Alemanha, na Holanda, em Itália e um pouco por todo o lado sempre se opuseram às privatizações – a todas as privatizações. A TAP só não teve o mesmo destino trágico de algumas das suas congéneres porque teve a sorte de encontrar Fernando Pinto, um gestor que já lá está há 14 anos – conheceu cinco primeiros-ministros diferentes – e tem conseguido gerir a empresa com uma competência que nunca lá existira antes.

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Há por isso uma sensação de dejá vu na convocação de mais esta greve. Mas com uma novidade: o Partido Socialista, que chegou a tratar de uma possível privatização da TAP ainda na década de 1990, depois em 2001, que depois incluiu a TAP nas empresas a privatizar que constavam do memorando de entendimento com a troika (sim, o compromisso de privatizar estava lá, por muito que isso custe a António Costa), acha agora, e cito, que “a TAP é fundamental pois, na era da globalização, tem a importância que as caravelas tiveram na era dos Descobrimentos”. Certamente entusiasmado com esta imagem marítima, António Costa também defendeu que “Portugal não pode prescindir da TAP” e que só o Estado pode garantir que a companhia aérea continua “ao serviço dos portugueses”.

Bem sei que estas coisas são ditas no calor da pré-campanha e que Costa já mostrou gostar de cavalgar o preconceito que boa parte da opinião pública tem contra o sector privado da economia, mas este discurso é perigoso porque vem associado a um outro: o de que privatizar a TAP corresponderia a uma “obsessão ideológica” (em Portugal, de resto, tudo o que se desvie da cartilha socialista é sempre apresentado como “radicalismo ideológico”, mas isso é outra discussão).

A primeira questão que estas declarações suscitam é a de saber se a “era da globalização” exige realmente que os Airbus da TAP funcionem como as caravelas do Infante (algumas das quais, refira-se, eram armadas por privados). A resposta é simples, quase intuitiva: não, não exige. Primeiro, porque pela mesma lógica também necessitaríamos de uma poderosa marinha mercante, coisa que já não temos, nem pública, nem privada. Na realidade a globalização encontra as suas próprias rotas, explorando as oportunidades, e é nesse roteiro que Portugal tem de estar não por ter uma companhia aérea, mas por ter as oportunidades. Um bom exemplo de como as coisas funcionam, sem necessidade de empresas estatais, é o da transformação do Porto por via do impacto causado pela escolha da Ryanair de fazer do aeroporto Sá Carneiro um dos seus hubs. As autoridades da região souberam criar a oportunidade, uma empresa privada soube aproveitá-la, o afluxo de turistas mudou o rosto da cidade. É assim que as coisas funcionam no tempo e globalização, não ao contrário – sendo que aqui o “ao contrário” seria começar por pedir à TAP o que fez a Ryanair. Nunca funcionaria.

A segunda questão levantada pela intervenção de António Costa é a ideia de que é precisa a mão do Estado (e dos governos) para uma empresa estar “ao serviços dos portugueses”. Não é necessário: o serviço público pode ser bem prestado, até em melhores condições, por empresas privadas, como hoje sabemos em quase todos os ramos de actividade. A ideia de que o Estado assegura melhor o serviço é uma ideia antiga e que acaba quase sempre da mesma maneira: com empresas pouco interessadas no público mas ao serviço dos seus sindicatos.

O que nos leva à questão recorrente da “obsessão ideológica”. De facto quando, há quase 30 anos, Margaret Thatcher decidiu privatizar a British Airways e, em conjunto com Ronald Reagan, desregular o transporte aéreo, isso tinha um fundamento: a “Dama de Ferro” acreditava que a concorrência traria mais progresso, mais inovação e mais riqueza do que o férreo comando estatal. No processo houve venerandas companhias aéreas que desapareceram, mas surgiram muitas novas e hoje ninguém duvida que se mudou para melhor, bastando pensar no custo, na frequência e na pontualidade das ligações aéreas (as refeições a bordo são um pouco piores, é certo, mas isso não parece impressionar demasiado quem procura ligações baratas e a qualquer dia e hora). Um só exemplo: uma viagem entre Lisboa e Londres custa hoje, sem promoções especiais, sensivelmente um quinto, em termos reais, do que custava em 1987, ano da privatização da British.

Passados todos estes anos é possível ver como se comportaram as dezenas de companhias privatizadas, comparando-as com as que continuam públicas. Isso tem vindo a ser feito e, num trabalho de referência realizado há mais de dez anos, concluía-se que, por regra, as companhias privadas tinham níveis de produtividade mais elevados, uma maior percentagem dos seus trabalhadores estavam directamente ligados ao sector operacional, tinham mais recursos financeiros, eram capazes de ter os seus aviões mais tempo no ar e a funcionar com menos pessoal de cabine, acabando assim por apresentar margens mais elevadas. Ou seja, como concluíam os autores, no transporte aéreo “o tipo de propriedade importa e as companhias privadas apresentam uma melhor perfomance e são mais eficientes do que as companhias totalmente públicas ou de capitais mistos” (o estudo pode ser consultado aqui). Face a estes dados, de que lado está a “obsessão ideológica”?

Acresce a todos estes argumentos que a TAP necessita de investimentos, e que é complicado, moroso, porventura impossível encontrar formas de esse investimento ser feito pelo Estado devido às regras europeias da concorrência – isto para além de que o Estado necessita é de dinheiro, não de mais dívida. É também por isso que a TAP tem mais hipóteses de sobreviver sendo privatizada. Em contrapartida, estará quase de certeza condenada a ser uma nova Allitalia ou uma nova Swissair se se mantiver pública – é uma questão de tempo e de mais algumas greves.

O ideal era a TAP ter sido privatizada numa altura mais favorável, mas o modelo que agora está em cima da mesa – privatização a 66%, seguida de privatização total dentro de dois anos em função do cumprimento dos objectivos – tem condições para garantir que haverá atenção a algumas das preocupações legítimas de quem se preocupa com o futuro de algumas ligações e com o funcionamento do hub de Lisboa. Porque essas são preocupações legítimas – já não é legítimo querer manter o tal condomínio sindicatos-governo que tratou demasiados anos a TAP como uma coutada sua e não com uma empresa focada no serviço aos seus clientes. E isso é que importa, pois a conversa das caravelas é apenas isso mesmo: uma conversa de caravelas para embalar os distraídos e os nostálgicos.