rA grande pergunta moral e política dos nossos dias é ‘O que é o jantar?’ O modo normal de lhe responder é através de um processo deliberativo. As sessões de trabalho iniciam-se regra geral quinze minutos antes de ir para mesa. Mesmo quando não há exércitos de pessoas encarregadas de executar as nossas deliberações, ou grandes assembleias, somos o nosso próprio exército, o general, e o povo em nome de quem se saqueiam as despensas.
A mão deliberativa com que governamos as nossas refeições é a mão que imaginamos que governa a maior parte das nossas vidas. Tem muitas vantagens. Regula os preços e respeita os feitios. Não elimina, bem entendido, todas as contrariedades. Com uma dose de vontade, porém, e os meios logísticos para a levar a cabo, as coisas parecem acontecer na maior parte dos casos por efeito das nossas deliberações; e a cada qual são dadas segundo a sua vontade. Este cruzamento de livre-arbítrio e debate aceso (duas invenções de resto admiráveis) tornou negligenciável o intervalo de tempo entre o que nos apetece e o que nos cabe.
É por essa razão que, mesmo nas famílias mais austeras, esfaimadas ou pobres, onde não se janta fora com regularidade, o jantar segue sempre as regras do jantar fora: tudo tem de ser decidido mas tudo pode ser escolhido. Em caso de conflito, acomodam-se escolhas diferentes. E assim as pessoas sentadas a uma mesma mesa, quando é esse o caso, tendem a comer coisas diferentes. De facto, a maior parte habituou-se a jantar fora lá dentro.
Esta alteração da relação com a comida reflecte a alteração da nossa relação com muitas outras coisas; reflecte a proeminência da possibilidade da escolha nas nossas vidas. Mostra uma ligação entre as discussões sobre o que comemos, vemos e ouvimos e as discussões prévias sobre aquilo que em cada momento queremos ver, ouvir ou comer. O processo parece inventado numa aula de direito: primeiro queremos, depois discutimos, a seguir decidimos e em quarto lugar a obra nasce. Nestes debates, os nossos espasmos são razão suficiente e os nossos argumentos são espasmos necessários.
O mundo ou a idade em que não havia escolha parece-nos hoje ao mesmo tempo remoto e pouco prático. Era uma idade em que ouvíamos música sem nos ocorrer que a quiséssemos ouvir e sem esperança de voltar a ouvi-la; em que as pessoas nasciam por acaso e desapareciam das nossas vidas para não mais voltar; em que nos acontecia exprimir surpresa diante dos bifes panados mais triviais; um mundo em que respondiam às nossas perguntas sobre o jantar de modo a prolongar a nossa agonia até à altura de nos sentarmos à mesa; em que não sabíamos exactamente o que nos esperava.