Todos temos muitas razões para estar zangados. Prometeram-nos a prosperidade eterna. Acreditamos. Até 2007 vivemos nessa ilusão criada pela “alquimia” financeira. Depois da crise financeira assistimos ao colapso do modelo que acreditávamos que funcionava: a dívida ia gerar prosperidade que permitia pagá-la e ficar mais rico. Afinal não foi assim.

Sentimo-nos legitimamente enganados, com razões para isso mas sem a razão dada pelo raciocínio lógico, mesmo que ele só esteja a ser feito agora, depois de tudo ter acontecido. Zangados, votamos. Os britânicos votaram pela saída do Reino Unido da União Europeia. Os norte-americanos elegeram Donald Trump presidente. É a segunda surpresa em menos de em cinco meses. O que aconteceu, a tal surpresa, é a prova de que os políticos, os economistas e os jornalistas se desligaram da realidade. Há lições a tirar, mas que podem já não ter qualquer efeito.

Depois dos acontecimentos que os matemáticos consideravam improváveis e que acabaram por estar na origem da crise financeira, vivemos agora tempos improváveis nas sociedades, tempos de fúria. A sequência é a vulgar: da crise financeira para a economia, para a sociedade, para a política.

À primeira qualquer um cai, à segunda só cai quem quer e houve muitos ainda a “quererem” cair na convicção de vivemos tempos normais. Os investidores voltaram a ser apanhados de surpresa, tal como no Brexit, embora tenham conseguido reagir mais rapidamente. Os analistas e economistas seguiram-lhes as pisadas. Paul Krugman tem mesmo um artigo em que distribui responsabilidade pelo que aconteceu nas eleições norte-americanas, e que vai da Rússia ao FBI passando pelos media.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Os media também não estão imunes a este afastamento da realidade que o Brexit e a vitória de Trump provam. Não temos estado a perceber o que se está a passar. Também nós jornalistas, como os investidores, analistas e economistas, temos de “acordar” para uma realidade social em que a fúria com o que se passou é o sentimento dominante. E a raiz de tudo pode estar na ausência de responsabilização e julgamento daqueles que provocaram a maior crise desde a Grande Recessão. Para o ano teremos eleições em França e na Alemanha. Esperemos que não se cometa os mesmos erros, que não se confunda desejos com realidades.

O discurso de vitória de Donald Trump sinaliza o regresso a alguma normalidade. Elogiou Hillary Clinton, disse que vai ser “o presidente de todos os americanos” e promete investimentos em infra-estruturas. Os investidores esperam uma política económica inflacionista. Mas, por absurdo que pareça, se Trump se institucionalizar e se o que vai fazer gorar as expectativas que criou, o que se segue pode ser ainda pior.

Em Portugal – é por aqui que navegamos também em águas perigosas -, o pior que nos pode acontecer é um fracasso da estratégia económica e financeira de António Costa. Não tivemos o voto de protesto. Temos um Governo com o histórico apoio do PCP e do Bloco de Esquerda porque António Costa conseguiu partir o muro que existia entre o PS e a sua esquerda, não por ter havido um voto de fúria.

O Governo de António Costa está a ter o condão de fazer acreditar que há um caminho para regressar à prosperidade eterna, que nos prometeram nas últimas décadas e que a crise financeira pôs em causa. A subida do PS nas sondagens mostra exactamente isso, as perspectivas são animadoras. A pergunta é: e se correr mal? Por isso é que a estratégia de António Costa é pouco prudente. O pior que nos pode acontecer é este Governo fracassar nos trabalhos de nos tirar da crise. Até agora temos estado a salvo destes tempos de fúria.