Não me peçam para adivinhar o fim desta história. Com os bancos fechados, um pagamento falhado ao FMI, a população em fila diante das caixas automáticas, e um confuso referendo marcado para domingo, vai a Grécia ficar no euro, ou sair? Ninguém sabe. Nem Juncker, nem Tsipras, nem Merkel, nem Obama. Ninguém, nos bastidores, está a puxar os cordelinhos. Ninguém tem um plano, ninguém percebe bem o que está a acontecer, ninguém sabe o que vai acontecer.
Talvez o “corralito” fosse fatal – até quando podia o BCE assistir os aforradores gregos em fuga? E talvez o referendo de Tsipras fosse previsível – já tinha sido o truque de Papandreou para ganhar tempo em 2011. Mas alguém estava à espera de ver o presidente da Comissão Europeia a apelar ao “sim”, isto é, a concorrer às eleições gregas? A Comissão Europeia é agora um partido? Temos, neste momento, o duvidoso privilégio de assistir a algo de obviamente caótico.
Sim, o Syriza é parte grande do problema. Há quem, no Syriza, nunca tenha desistido de armar uma revolução à velha maneira. Esta foi a sua oportunidade. Resta saber se os gregos querem o socialismo. A crer nas sondagens, preferem o euro. Mas não nos fiquemos pelos restos mortais do leninismo de 1970. Porque antes do Syriza, houve Samaras, a antecipar a eleição do presidente da república. E antes de Samaras, Papandreou, o primeiro a inventar o referendo. Na Grécia, o facto é este: à esquerda e à direita, ao centro e nos extremos, ninguém ali acha que pode governar com a verdade.
O Syriza terá os seus comunistas. Mas se também teve todos os votos que arranjou na última eleição, não foi pela conversão marxista do eleitorado, mas porque, de facto, o Syriza é apenas a máscara radical da velha oligarquia e dos velhos interesses. A oligarquia e os interesses querem tudo, incluindo mais impostos, desde que não haja reformas, nem mudanças, nem, sobretudo, uma administração fiscal independente. É curioso como, nas últimas semanas, as posições se inverteram a respeito da austeridade: agora é o Syriza a propor aumentos de impostos, como em Portugal, e o FMI a dizer que não resulta. A única coisa que o Syriza não quer é o que já a direita grega não queria, nem a esquerda moderada: limitar as distribuições com que os partidos políticos mantêm as suas clientelas, ou remover os constrangimentos que geram rendas para os seus amigos.
O poder político na Grécia é um poder fundamentalmente deficitário, tolerante da evasão fiscal e das posições de renda, e que só foi viável até agora através da sua dependência da Europa. Não é uma herança levantina: é o que se desenvolveu na Grécia graças aos subsídios de Bruxelas e ao crédito barato do euro, e que ainda se mantém com os empréstimos dos seus parceiros europeus e do BCE.
A ironia desta história é que a Europa esperou mudar a Grécia, e mudou-a para pior, ao poupar os seus oligarcas à pressão mais efectiva, que não é aquela que consiste em sermões europeus, mas a que provém de contribuintes cansados, credores sem confiança, e empresários e trabalhadores frustrados. As propostas europeias das últimas semanas têm consistido em reformas graduais em troca de liquidez. O Syriza não pode aceitar. Por razões ideológicas? Sim, mas também pelas mesmas razões por que Samaras e Papandreou resistiram a propostas idênticas: porque receia perder poder, isto é, decepcionar aqueles a quem tem servido e enfrentar aqueles a quem mentiu. A oligarquia grega invoca as dificuldades sociais, a soberania nacional ou a democracia. São apenas véus para disfarçar a nudez do seu egoísmo.
Vai a Grécia obrigar-nos finalmente a reescrever a história da integração europeia? Para além dos ideais e das geopolíticas, a integração foi também o jogo sujo de burguesias predadoras, que tentaram usar o projecto da UE como um meio para extrair recursos a outros países. A enorme dívida da Grécia, que a economia grega nunca poderia ter gerado por si própria em condições de mercado, é apenas a medida do sucesso da oligarquia de Atenas em abusar dos seus parceiros europeus. Graças à guerra fria e aos equilíbrios franco-alemães, houve sempre razões na União Europeia para fechar os olhos a estas e outras golpadas (como a da Política Agrícola Comum, por exemplo).
Ainda hoje quase todos os cálculos políticos e exercícios analíticos consistem em tentativas de dramatizar este e aquele aspecto desta história, a fim de esconder o essencial. Somos convidados a recear um “passo atrás” na integração europeia, a tremer perante o “perigo de contágio”, a desconfiar das manobras de Putin. Vale tudo, para não pensarmos naquilo que mais importa: a corrupção da integração europeia, que é também a corrupção da democracia, como se vê agora na Grécia, onde o Syriza e os seus aliados de extrema-direita tentam convencer os gregos de que se podem outorgar a si próprios, através do voto, o direito de exigir aos outros contribuintes europeus que continuem a pagar-lhes as despesas. O que os gregos poderão ajudar-nos a todos a descobrir é que a Europa, como o socialismo, também acaba quando acaba o dinheiro dos outros.