Há coisas que me cansam. Uma delas são as vagas de indignação que percorrem o espaço público sempre que uma notícia nos choca. A outra é a nossa cíclica incapacidade para nos ficarmos pela indignação e pela proclamação do choque – no dia seguinte já esquecemos tudo e passamos a outra indignação diferente e manifestamo-nos chocados com outro tema qualquer.

A forma como, no nosso país, nas nossas redes sociais, nos nossos espaços públicos de debate, habitualmente se trata qualquer nova indignação ou qualquer novo choque tem, por regra, três características altamente negativas. A primeira é pensar que os problemas que alguns dos eventos chocantes revelam se resolvem através de uma qualquer mudança nas leis, mesmo sabendo nós que as sociedades não se mudam por decreto. A segunda é a tendência para ficar sempre pela superfície quando se discutem os problemas. A terceira é apontarmos preferencialmente o dedo a outrem e nunca nos interrogarmos sobre o que podemos fazer para, digamos assim, nos indignarmos menos vezes – por termos menos motivos para isso.

Vem tudo isto a propósito das sucessivas cenas de violência com que fomos confrontados nos últimos dias. Primeiro foi o vídeo do bullying da Figueira da Foz. A seguir veio o assassinato brutal de um adolescente por um rapaz pouco mais velho. Logo depois a noite de violência em que degenerou a festa do Benfica no Marquês de Pombal. Por fim, verdadeira cereja em cima do bolo, as imagens de polícias a espancarem dois adeptos do Benfica enquanto uma criança, filha de um deles, se urinava de aflição.

É fácil, não tem custos e alivia a bílis ir para as redes sociais tratar todos por energúmenos e selvagens os protagonistas destas violências – e muitos deles, sobretudo os mais responsáveis, são efectivamente energúmenos e selvagens. Quando se pretende ser um bocadinho mais sofisticado, procura-se uma qualquer explicação “social”, o que por estes dias acaba com demasiada frequência na “crise” e na “austeridade”. Raras vezes se assume o que é difícil assumir: primeiro, que a violência faz parte, infelizmente, da natureza humana; depois, que quando colectivamente se perdem as referências morais, não nos devia surpreender que se dilua a fronteira entre o tolerável e o intolerável, entre a simples estupidez e a crueldade, entre o bem e o mal.

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Há pouco mais de um ano, aquando de uma outra comoção nacional – a “descoberta” de que muitas das praxes académicas eram claramente excessivas, uma discussão desencadeada depois da morte de seis jovens na Praia do Meco – lembrei que o exercício de humilhação do outro não era um exclusivo dessas praxes, tinha-se até tornado no desporto preferido dos talk-shows televisivos. Não deixa de ser significativo que, desta vez, estes eventos tenham ocorrido pouco depois um desses exercícios de humilhação levados ao limite do tolerável, na circunstância a ridicularização um jovem adolescente pela sua aparência física.

Não vou misturar todos estes casos – até porque a agressão gratuita protagonizada por um responsável da PSP de Guimarães não tem comparação com os outros – mas recordar aquilo que, de alguma forma, une todos os que foram protagonizados por adolescentes e por jovens.

O meu primeiro ponto é simples, apesar de ser muitas vezes esquecido: os seres humanos não nascem anjos que a sociedade estraga, bem pelo contrário, precisam de ser educados e de aprenderem a socializar para viverem pacificamente. Há mesmo períodos na vida dos jovens em que a facilidade de deslizar para a violência são especialmente grandes, como o tempo da passagem da adolescência à idade adulta (os rituais de iniciação, tão comuns em todo o tipo de sociedades, mais primitivas ou mais evoluídas, não surgiram do nada). O Padre Américo, que tantas crianças pobres e abandonadas tratou, costumava dizer que “não há rapazes maus”, mas para que tivesse razão esses rapazes tinham de ser enquadrados e educados – deixados a si mesmos, acabariam mal. Não vou aqui discutir Hobbes, Rousseau ou Locke, mas julgo que não necessitamos de seguir “A Guerra dos Tronos” (que nos mostra apenas um pouco da violência que era comum na Idade Média) para compreendermos que aquilo que nos permite viver pacificamente é aceitarmos um conjunto de regras e termos um mínimo de boa educação.

O segundo ponto é, de alguma forma, corolário deste primeiro: uma sociedade que aceita a alarvidade, que tolera a obscenidade (quando não faz gala dela), que não castiga mesmo o mais inocente dos vandalismos, antes se ri do atrevimento das crianças, uma sociedade que vê a boa educação como uma coisa antiquada e onde até o cavalheirismo é confundido com marialvismo, não é apenas uma sociedade que perdeu, ou está a perder, as suas referências morais: é uma sociedade onde a violência não deixará de estar sempre mais e mais presente.

O terceiro ponto é que não podemos continuar a viver nesta espécie de jogo do empurra em que um dia se responsabilizam as famílias, que despejam os filhos nas escolas ou os abandonam em frente a um ecrã de televisão, para no dia seguinte se culparem as escolas e, claro, a lei X ou a lei Y que está mal feita e a necessitar de reforma. Quando chegamos ao ponto de algumas famílias, com filhos pequenos, terem optado por já nem sequer terem televisões em casa durante a sua fase de formação, será que não temos nada a dizer sobre a responsabilidade dos operadores? Quando aceitamos que, todas as manhãs, as ruas do Bairro Alto e do Cais do Sodré, em Lisboa, ou da Ribeira, no Porto, sejam lixeiras para onde hordas de adolescentes e jovens atiraram copos de plástico e garrafas vazias, será que podemos ficar surpreendidos que alguns as atirem também aos polícias, como se estivessem à procura de uma batalha campal? Quando aceitamos, em nome da arte dos grafitti, que nenhuma parede está a salvo de um vandalismo muitas vezes totalmente gratuito, não estamos a aceitar que é possível viver numa sociedade sem regras, em nome de uma falsa ideia de “liberdade de expressão” que tantas vezes não é mais do que um carimbo de marcação de território?

Podia continuar por aqui adiante, e devo dizer que nada do que escrevi desculpa ou justifica os comportamentos que nos indignaram – pelo contrário: se nada acontecer, se encolhermos os ombros, se acharmos que, coitados, são apenas rapazes e raparigas desenquadrados, estaremos de novo a enviar a mensagem errada não apenas a quem prevaricou, mas a todos os estarão tentados a imitá-los.

Uma sociedade decente é uma sociedade com regras, uma sociedade onde se ensina às crianças e aos jovens quais os limites e onde moram as virtudes. Isto não é moralismo, é realismo, é humanismo. E se deve começar na casa de cada um, tem de prolongar-se no espaço público e nas instituições do Estado.

Mas às vezes parece que não somos uma sociedade decente.

PS. Como já escrevi, o caso da agressão de um responsável da polícia a uma família de adeptos é de outra dimensão. E a forma como a PSP está a reagir é a pior de todas. Primeiro, porque anda à procura de uma desculpa (a alegada “cuspidela”). Depois, porque o inquérito já aberto devia ter sido acompanhado pela imediata suspensão do agente envolvido. Era o mínimo, mas sobre isso nada sabemos.