Perante as acusações de capitalismo predatório e desumanizado, alimentado pela obsessão do lucro, muitas empresas responderam com algumas medidas, adotando voluntariamente comportamentos e ações destinadas a promover o bem-estar da coletividade. Estas medidas são conhecidas como “políticas de responsabilidade social”. Todos recordamos alguns exemplos de campanhas de solidariedade e de angariação de verbas para instituições de solidariedade social, promovidas por empresas, principalmente em períodos como o Natal.
Mas existem outros problemas muito mais graves (porque nos afetam a todos) que surgem atualmente em muitas empresas, e que estão a transformar-se num verdadeiro desastre social. Refiro-me ao excesso de carga horária semanal e à invasão predatória da vida profissional na vida pessoal. Trabalhamos cada vez mais horas, e passou a ser um hábito levarmos trabalho para casa. Por outro lado, os meios de comunicação proporcionados pelas novas tecnologias, como o e-mail, o telemóvel, as mensagens escritas, etc., contribuem para que a vida profissional subjugue a nossa vida pessoal e familiar.
A falta de pudor e sentido ético tomou conta de muitas empresas, e já não se hesita marcar uma reunião para as 19 horas. Tornou-se um hábito telefonar, enviar e-mails ou mensagens escritas fora do horário de trabalho. Além disso, é cada vez mais frequente que o jantar familiar seja interrompido por um contato profissional. O serão, após o dia de trabalho, é muitas vezes utilizado para responder aos e-mails que ficaram pendentes durante o dia. As férias são frequentemente invadidas com contatos profissionais, porque se criou a ideia de que se tem de estar sempre contatável e disponível. Este servilismo profissional, transformou-se numa nova escravatura, que afeta todos os níveis de responsabilidade dentro das empresas.
A pressão é enorme e aquele que procura resistir, colocando barreiras a esta autêntica invasão da sua vida pessoal e familiar, é criticado pelos colegas e pelas chefias. Existe uma coação moral para que todos estejam sempre disponíveis para a empresa.
Atualmente, um dos grandes problemas é considerar que é “normal” trabalhar diariamente 10-12 horas. Esta ideia tem criado raízes em várias áreas de atividade profissional. Uma jovem mãe advogada que acompanhei, contrariando a regra do tempo de permanência no local de trabalho, procurava sair o mais tardar até às 19 horas do escritório para passar algum tempo com o filho mais pequeno, cuja hora de deitar era habitualmente pelas 21h30 horas. A jovem advogada era dedicada e competente, mas ousou quebrar com o status quo do horário das 12 horas diárias do grande escritório de advocacia onde trabalhava. Um dia foi chamada ao gabinete de um dos sócios. Foi-lhe dito que as saídas do trabalho àquela hora haviam sido notadas e estavam a gerar algum incómodo junto dos outros colegas. Ela replicou, alegando que tinha a mesma produtividade do que eles e que desejava, para além de trabalhar, de ver o seu filho crescer e desfrutar da sua presença. Reconhecendo a competência da sua jovem colaboradora, o sócio respondeu: “Tem razão, mas, para acabar com os falatórios, envie de vez em quando um e-mail aqui para o escritório, por volta das 10-11 horas; assim pelo menos dá a ideia de que continua a trabalhar a partir de casa”.
A conciliação entre o trabalho e a família é uma das tarefas mais difíceis de alcançar para qualquer casal com filhos. A pressão da sociedade está cada vez mais do lado do trabalho, pois a nossa cultura valoriza muito mais o sucesso profissional do que o investimento feito na família. Embora sejam realidades diferentes o trabalho e a família não são incompatíveis; pelo contrário, são complementares. Uma boa satisfação no trabalho enriquece a vida familiar e vice-versa.
É tempo de pedir às empresas que contribuam para o bem-estar coletivo, contrariando este ambiente de pressão que conduz a um autêntico sequestro profissional. É tempo de todos começarmos a exigir que as empresas adotem normas éticas de responsabilidade familiar.
Médico Psiquiatra