Há dias ouvi o presidente português, Marcelo Rebelo de Sousa, a justificar a sua ida a Angola para a tomada de posse de João Lourenço. “Há um presidente eleito, e o presidente da República de Portugal, uma vez convidado, vai à posse do novo presidente da República de Angola, pensando nas relações fundamentais que existem entre milhares e milhares de portugueses que estão em Angola e também alguns milhares de angolanos que estão em Portugal.”

Marcelo, o “homem dos afectos”, mostrou como as relações entre Angola e Portugal são traiçoeiras, mesmo para um homem com o seu gabarito verbal.

É ponto assente que o presidente de Portugal representa os portugueses. Por isso, teria bastado dizer que vai representá-los no seu todo.

Quanto aos “angolanos que estão em Portugal”, certamente não é o presidente português quem os representa. Além disso, o MPLA não permite que os angolanos na diáspora, incluindo em Portugal, votem. Não é a representação de Marcelo que vai suprir esse direito constitucional negado aos angolanos em Portugal.

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Sobre os “portugueses em Angola”, temos aqui uma tese ofensiva amplamente difundida pelas classes política e empresarial, segundo a qual Portugal deve estar à disposição do MPLA para salvaguardar os interesses económicos e de segurança dos portugueses em Angola.

Essa tese suscita duas leituras. Primeiro, o MPLA – agora com a presidência bicéfala de José Eduardo dos Santos e João Lourenço – está colado ao poder e, por isso, é o único elemento que pode conceder oportunidades de negócios e proteger os portugueses. Esta é, mais ou menos, a leitura portuguesa.

A segunda leitura, mais de feição angolana, é crua. Se só o MPLA pode garantir negócios a Portugal e defender os portugueses em Angola, então é porque todos os outros angolanos que não são do MPLA e não estão no poder são – aos olhos dos poderes portugueses – uma ameaça aos interesses comerciais e à segurança dos portugueses em Angola.

Assim, Portugal pode desculpar qualquer acção que o MPLA empreenda contra o seu próprio povo, porque isso serve os interesses dos portugueses.

Há dias, falei com uma amiga portuguesa que esteve pela primeira vez em Angola durante as eleições. Circulou de táxi de um lado para o outro e regressou ao seu país encantada com os angolanos, o povo em geral, descrevendo algumas pessoas como “personagens fantásticos, dignos da melhor literatura”. Sentiu-se apenas intimidada e desconfortável com a arrogância e o exibicionismo da nomenclatura do MPLA, no meio de tanta miséria. De um modo geral, este tipo de opiniões, vindas de simples cidadãos, não interessa a Marcelo, nem aos políticos, empresários e comentaristas portugueses que fazem consultorias para o regime angolano.

Marcelo também mencionou os outros países que reconheceram os resultados de umas eleições sem apuramento de votos em 15 das 18 províncias. Portanto, Portugal não está sozinho. Marcelo foi apenas o primeiro e o único estadista a felicitar o regime, mesmo antes de o próprio órgão eleitoral do regime, a CNE, ter declarado a vitória do MPLA. Democracia é isso mesmo. Não é?

Neste cenário, os angolanos que não são do MPLA e que criticam a postura de Portugal são simplesmente classificados como tolos.

Há uma história comum de 500 anos, em que Portugal escravizou e colonizou os angolanos. Portanto, a relação entre os dois povos nunca foi de amizade nem de interesses comuns. Sempre foi como Portugal bem entendeu.

Todavia, em 1975, não foi o povo angolano quem pôs os portugueses em fuga atabalhoada, com uma mão à frente e outra atrás. Foi o MPLA.

Não foi o povo angolano, essa ameaça aos interesses económicos e à segurança dos portugueses, quem entregou o poder ao MPLA em 1975. Foi a própria liderança política portuguesa. Na altura, quem o fez achava – como me confidenciou um antigo diplomata português – que os do MPLA “eram os que mais se pareciam connosco” (a tese do lusotropicalismo). De igual modo, foram o Partido Comunista Português (PCP), que estava a dar cartas em Portugal, e o Movimento das Forças Armadas (MFA) quem primeiro convenceu os cubanos e os soviéticos a entrarem em Angola, dando cobertura ao MPLA, que se instalou no poder. Isto mesmo reiterou Otelo Saraiva de Carvalho em diversas ocasiões.

Nem adianta falar dos anos de Cavaco Silva e de Durão Barroso, e da implementação dos infames Acordos de Bicesse, assinados em 1990. Também eles usaram do mesmo preconceito e da mesma parcialidade dos comunistas.

Nem sequer adianta mencionar o envolvimento de uma empresa portuguesa, a SINFIC, que foi instrumental para a manipulação das eleições de 2012 e de 2017.

O cerne da desgraça e da tragédia dos angolanos parte sempre de Portugal.

O presidente português bem poderia ter dito que vai a Angola porque é uma oportunidade para transmitir o “afecto”, mesmo que cínico, do povo português para com o povo angolano.

Poderia também ter dito que vai transmitir o apoio e o encorajamento de Portugal ao novo presidente para enfrentar os desafios do desenvolvimento humano em Angola. E ficaríamos todos contentes, incluindo o próprio presidente eleito e o MPLA, porque o cinismo é uma característica que nos une.

Pensei que o presidente dos “afectos” tivesse tacto diplomático para lidar com Angola. Enganei-me. Mas não me engano quanto à hospitalidade, ao sentimento de amizade, à capacidade de perdoar e à tolerância do povo angolano.

Bem-vindo a Angola, camarada Marcelo.

Texto originalmente publicado no Maka Angola