A campanha eleitoral nem foi demasiado longa, pois fomos poupados no mês de Agosto. Mesmo assim, que cansaço. E, também, que desilusão. Cansaço, porque se tem a sensação de que se está a ouvir sempre o mesmo. Desilusão porque se ficou longe, muito longe, de debater seriamente as opções que temos pela frente. Desilusão ainda porque ninguém falou toda a verdade, pois ninguém preparou os eleitores para os muitos dias, meses, anos, que, mesmo fazendo as reformas necessárias, teremos de dificuldades, de contenção, porventura de novas crises.

No passado mês de Maio escrevi aqui uma crónica sobre o programa de governo que gostava que alguém apresentasse para poder votar “com entusiasmo e convicção”. Fi-lo depois de ouvir entrevistas de António Costa e Pedro Passos Coelho e de conhecer o cenário macroeconómico do PS. Passaram quatro meses e confirmou-se o meu receio: ninguém apresentou esse programa. Pior: durante a campanha muito do que ouvi afastou-se das minhas preocupações centrais. Nenhum político disse que preferia deixar fazer, dando mais espaço aos cidadãos, em vez de prometer fazer mais. Nenhum teve a frontalidade de dizer que vivemos sobre várias bombas relógio de muito difícil solução: ninguém lembrou que ainda temos uma dívida que, considerando o Estado, as empresas e as famílias, é a maior de toda a OCDE (370% do PIB); que os problemas de sustentabilidade não são apenas da Segurança Social mas também do Serviço Nacional de Saúde; que mesmo que conseguíssemos inverter o declínio demográfico, temos um desequilíbrio que durará décadas a corrigir; que estamos numa Europa sobre a qual se acumulam nuvens negras e da qual não se pode esperar novo maná; e por aí adiante.

No final desta legislatura, e de três anos de troika, evitou-se o cataclismo mas mudou-se muito menos do que é necessário mudar. Basta ver como, nesta campanha, se voltaram a fazer promessas a torto e a direito (façam a lista do que Costa foi dizendo pelas terras onde passava) e se regressou ao bodo de última hora (olhem, por favor, para as cedências do Governo na véspera da ida às urnas, como acaba de suceder com os enfermeiros). Basta também ver como, mal se folgou um pouco o cinto, muitos portugueses deram sinais de querer regressar aos hábitos de consumo de antes da crise, o que logo se reflectiu na balança comercial.

Um dia teremos de discutir este clima político, cultural, mediático, que não nos deixa dar mais responsabilidades aos cidadãos e pedir menos aos governantes, pois a pobreza secular e a secular dependência “da Corte”, “do ministro”, “do padrinho”, “do partido”, “do subsídio”, não podem explicar sempre tudo e, sobretudo, não podem continuar a amarrar-nos à “indignidade” ou à “decadência do espírito”, males de que Eça já falava em 1872 quando nos comparava à Grécia. Um dia teremos mesmo de libertar-nos dessa comparação – mas suspeito que não será ainda no próximo domingo.

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É por tudo isso que não posso ir votar feliz e cheio de convicção. Só posso tentar evitar um mal maior – e devo dizer que, infelizmente, esse mal maior é a pobre e errática alternativa que o PS se revelou a um Governo com imensos defeitos (mas com um primeiro-ministro que, como também já escrevi, me surpreendeu em dois momentos-chave, pois saiu da norma, fazendo com que me sentisse devedor da sua determinação e de como sinalizou que até em Portugal se pode contrariar o fatalismo: foi quando recusou a demissão “irrevogável” e, com isso, evitou uma crise política de trágicas consequências, uma crise “à grega”; e quando disse que não a Ricardo Salgado, não se submetendo ao mais nocivo dos poderes fáticos do país).

Não indo feliz às urnas, pois ninguém me oferece o que procuro, sei contudo muito bem porque não posso votar no PS. Neste PS. São seis esses motivos.

O primeiro motivo é que não concordo com a estratégia de crescimento que o PS desenhou para Portugal. O programa da equipa de Mário Centeno é bem melhor do que as loucuras de outras legislaturas, tem muitas propostas que eu gostava que fossem consideradas e até adoptadas pelo próximo governo, mas assenta na ideia de que devemos relançar o cescimento por via de um estímulo ao consumo das famílias. É uma ideia que poderia ter validade numa grande economia com um poderoso mercado interno, mas é uma ideia muito perigosa numa pequena economia aberta como a nossa. E ainda mais perigosa se pensarmos como Portugal é uma frágil nau no revolto mar da globalização. Um país onde todos estão tão endividados como é o nosso caso não pode querer sair da crise consumindo mais e dando assim mais estímulos aos sectores económicos que não estão submetidos à concorrência internacional. Devíamos todos ter aprendido essa lição com o que não crescemos na primeira década depois de termos aderido ao euro. Para além de que esta é uma estratégia arriscada, muito arriscada: se o “estímulo” não funcionar, o que é bem provável que aconteça, o Estado apenas terá visto o dinheiro voar, apenas ficará com uma dívida ainda maior.

O segundo motivo é que nem sequer sei se os socialistas – incluindo o próprio António Costa – acreditam mesmo no programa de Centeno. Se não tiveram apenas de engoli-lo para tentar recuperar a credibilidade perdida, para tentar ultrapassar a imagem de serem “o partido da bancarrota”. A todo o momento ouço discursos que contrariam o que Centeno propôs, a todo o momento percebo que há imensa gente que se sente desconfortável com aquelas propostas, gente que se cala a contragosto mas alimenta a esperança de, conquistado o poder, ir por um caminho bem diverso. É da natureza do partido. E é também consequência do seu discurso autista sobre o que teve de ser feito nos últimos quatro anos.

O terceiro motivo é que este PS não deixou, nas suas entranhas, na sua natureza profunda, de ser o PS de Sócrates. É o PS que Costa mandou estar em silêncio quando o ex-líder foi detido, mas apenas isso. E se Costa procurou marcar distâncias – com uma fugidia (e cínica) visita a Évora e um tardio distanciamento dos projectos megalómanos de investimento público –, a verdade é que o PS que “assume todo o seu passado” ainda é um PS que nega os erros desse passado e não perde uma oportunidade para repetir que tudo não passou de uma consequência da crise mundial.

O quarto motivo é o da acumulação de sinais de que não desapareceram do PS de Costa os tiques autoritários do passado recente do partido. Agora será mais arrogância do que autoritarismo puro e duro, mas a forma como, nesta campanha, o PS lidou com a imprensa, e Costa com alguns jornalistas, é, no mínimo, inquietante. Se houve coisa que mudou nestes anos foi o ar que se voltou a respirar em muitas redações, e um bom sinal disso é ter sido na rádio pública que saiu a notícia mais incómoda para o Governo de toda a campanha (a relativa às imparidades da Parvalorem).

O quinto motivo é que António Costa foi, para mim, mais do que uma desilusão – foi a confirmação do que no seu passado político sempre foram os seus traços mais negativos: o calculismo; as hesitações; o excesso de auto-confiança. Posso estar enganado (e já me enganei muitas vezes), mas não estou a vê-lo a, naquelas duas circunstâncias em que Passos fez a diferença, Costa ter feito o mesmo. Sinto que ele é timoneiro que se preocupa mais em seguir o vento do que em seguir o rumo certo, e isso inquieta-me. E inquieta-me porque vamos continuar a ter de seguir um rumo difícil.

O sexto e último motivo, aquele que é mesmo o mais grave de todos, foram todos os sinais que deu de que prefere fazer pontes com os radicais que estão à sua esquerda do que entender-se com os que, à sua direita, sempre estiveram do lado do PS nos momentos decisivos da nossa democracia: na luta contra uma nova ditadura no tempo do PREC; na vontade de integrar a então CEE e, depois, de fazer o caminho para euro; nas revisões constitucionais que, em 1982 e 1988, permitiram que fôssemos uma democracia plena e uma economia de mercado em busca da modernidade. O “conciliador” parece achar – disse-o ou sugeriu-o – que prefere o apoio dos que sempre estiveram, e ainda estão, do outro lado do nosso consenso democrático, europeu e ocidental, a entender-se com quem até já lhe estendeu a mão. O cenário, cada vez mais real, cada vez mais presente, de que Costa pode querer governar, mesmo perdendo as eleições, com o apoio do Bloco de Esquerda é aterrador e mostra como o líder do PS não parece perceber a diferença entre governar um município e governar um país no quadro do Pacto Orçamental.

E assim estou, eu que há tantos anos defendo que algumas das reformas de que Portugal necessita implicam um acordo entre um PSD capaz de compromissos e um PS menos preso a ideias ultrapassadas.

Não nos basta um PS forçado ao realismo quando chega ao Governo se continuarmos a ter um PS incendiário quando é oposição. O caminho para tornar a nossa sociedade mais aberta e a nossa economia mais competitiva passa por romper com hábitos culturais que não são apenas dos políticos, antes infiltram todas as instituições e criam dependências na sociedade civil. Esse caminho só pode ser feito com um PS que tenha feito o seu aggiornamento e, por isso, consiga fazer compromissos com o centro-direita, um PS que compreenda de uma vez por todas que não só Varoufakis não tinha razão, como a cultura elitista, radical e chic que ele representa é o contrário da que deve alimentar um partido com raízes populares e que sempre foi um pilar da nossa (ainda curta) tradição de liberdade.