Mais uma vez Natal. Não digo “mais uma vez” com tédio, longe disso. É só que, como tantas outras coisas, o Natal, na vida dos seres humanos, se vai, com o tempo que passa, parcialmente esvaziando de conteúdo. As pessoas que costumavam estar lá cada vez menos lá estão. Umas morreram, outras têm as suas vidas, outras estão longe. E digo-o menos ainda, é claro, com censura. Felizmente, consigo ainda imaginar o prazer dos outros, dos que ainda sentem alegria e excitação com os papéis coloridos dos embrulhos, belos papéis coloridos dos embrulhos, e isso basta para evitar tentações cínicas.

A propósito: porque é que as pessoas censuram o suposto “consumismo” do Natal? Quem gosta a sério do Natal são as crianças, e por causa das prendas – não por causa da eventual tia velha que por lá aparece. Há muitos dias do ano mais propícios a lições de frugalidade. Eu, quando era miúdo, gostava imenso do dito “consumismo”, e se alguma reprovação me passava pela cabeça era ele não atingir proporções mais elevadas. E não só eu: conheço pessoas que ainda não recuperaram do trauma de nunca terem tido, na altura certa, a devida pista de carrinhos eléctricos, e coisas assim. Não deve entretanto ter ocorrido uma qualquer mutação antropológica que tenha transformado o carácter geral dos humanos, pelo menos neste capítulo. É verdade que não sou crente e que o Natal não teve para mim nunca a dimensão espiritual que os crentes (legitimamente) lhe atribuem. Mas ando muito convencido, e não é de hoje, que a censura do dito “consumismo” tem mais a ver com aquele obscuro impulso humano a dizer “o que deve ser dito” em certas circunstâncias. É, diga-se de passagem, uma mania danada e muito difundida.

Há, com a idade, cada vez menos dias excepcionais, dotados de uma magia, como se diz, particular. E quando surgem, por milagre, não costumam respeitar calendários. Uma pessoa habitua-se a estas perdas, guardando nostalgia. E o hábito e a nostalgia são, no fundo, bons. Dizem-nos que não somos o que antes tínhamos sido e que não vamos nunca mais voltar a ser. A nostalgia, quando é bem entendida, educa. Educa-nos na percepção da transiência das coisas, o que ajuda a evitar certezas e dogmatismos de toda a pinta. E ajuda-nos também a procurar novas felicidades. Com sorte, elas aparecem.

Mas deixemo-nos de tretas. É bom, no Natal, ver as pessoas na rua, ocupadas com as últimas compras. Sobretudo no último dia. Dantes, nas reportagens televisivas do dia 24, os jornalistas obedeciam quase sistematicamente a um velho hábito: censurar as pessoas – “os portugueses” – que deixavam as compras para a última hora. Nunca percebi o fundo moral da acusação. Desleixo? Indiferença? Falta de espírito natalício? Enfim, provavelmente a mesma vontade de cumprir com o que se julga ter de dizer, acompanhada do vulgar gozo de reprovar. Mas é até no último dia que a coisa tem mais graça. Será que a loja ainda está aberta? Será que tem o que quero que tenha? É mais amador, menos profissional. E, de repente, percebe-se, com temor e tremor, a importância de acertar no presente.

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E as iluminações, valha a verdade que se diga, são bonitas. Com a nostalgia que se sente, vemo-las melhor. São iluminações de outras iluminações. Vêm de trás, de há muito tempo. Vêm da infância. O que há de belo nelas, no seu ritual, não é a nossa infância, é o mundo da nossa infância, o mundo à volta da nossa infância. São uma prova tangível da realidade desse mundo passado, que também já não existe. Oferecem um certo sentimento de permanência. Não somos quem fomos, excepção feita a certas formas de identidade burocrática, e o mundo ainda menos, se possível, mas há como que a suspeita de uma continuidade, que quase tudo, fora disso, contraria. Deus guarde as iluminações de Natal.

No outro dia, recebi dois presentes antecipados. Abri logo, com os privilégios garantidos pela provecta idade, os embrulhos. (Na infância, era preciso esperar até a ceia de Natal acabar. Nunca mais acabava, e o olhar estava o tempo todo posto no chão à beira do pinheiro. É verdade que o procedimento gerava grandes entusiasmos, junto com pequenas batotas nos dias anteriores: onde estão escondidos?, etc. Mas é bom que adultos sérios não sejam tentados a batotas.) Eram dois livros. Um deles, muito erudito, já me pus a lê-lo, e com benefício. Apreciei a sabedoria da escolha. Há muitas vantagens nas novas modalidades natalícias

Agora é esperar que a loja onde vou tenha o que quero. Seria uma tremenda injustiça que não tivesse, agora que percebi outra vez que é Natal. Mas vai ter, costuma ter, tem de ter. Bom Natal!