Alguém sabe por que não houve greve do Metro em Lisboa? Durante dias andámos às voltas com a contestação dos maquinistas do Metro de Lisboa “a um conjunto de alterações que representam um ataque aos direitos dos trabalhadores e a degradação da qualidade do serviço prestado aos utentes“.
Mas quais eram essas alterações? E em que consistia essa degradação? Nunca soubemos. A sindicalista Anabela Carvalheira da Federação dos Sindicatos dos Transportes e Comunicações (Fectrans) e funcionária do Metro de Lisboa, nada disse e também ninguém lhe perguntou. Depois a greve foi desconvocada. Novamente Anabela Carvalheira nos deu os respectivos esclarecimentos em cifra, agora poética: “Chegámos a um entendimento. Somos todos pessoas sérias. Da mesma forma que secretaria [de Estado] chegou a acordo [em relação] àquilo que nós propusemos – e não trouxemos nenhum documento escrito –, da mesma forma acreditamos nos interlocutores. Para nós vale a palavra, que foi coisa que não tivemos nos últimos cinco anos”. É sem dúvida tocante que sejam “todos pessoas sérias”.
Confesso que não percebo bem a parte do “não trouxemos nenhum documento escrito” mas esta aversão a documentos escritos parece agora fazer parte da linha oficial do PCP de cuja Organização Regional de Lisboa (sector de Transportes) Anabela Carvalheira faz parte há largos anos.
Já o secretário de Estado Adjunto e do Ambiente, José Mendes, deu uma explicação que tanto serve para a greve do Metro como para uma sessão de alinhamento dos chakras de um casal desavindo: “Havia uma espécie de um muro de silêncio. Os trabalhadores tinham alguma dificuldade em fazer passar a sua mensagem, as suas reivindicações, e foi possível desde logo abrir uma janela de diálogo e acordar com os sindicatos que vamos começar um processo estruturado de negociações e de conversas que possa ajudar a que os diferentes pontos de vista possam convergir para resolvermos os problemas”.
O ministro Vieira da Silva alinhou pelo mesmo parâmetro do esotérico-afectivo: “O ministro do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, Vieira da Silva, comentou esta segunda-feira, a propósito da desconvocação da greve parcial pelos trabalhadores do Metropolitano de Lisboa, que provavelmente os sindicatos têm mais abertura perante este Governo.”
Sem querer desmerecer na auto-estima de Vieira da Silva, nomeadamente na convicção que ele mostra nos poderes da simpatia emanada pela sua pessoa e até percebendo eu a dificuldade experimentada pelos sindicalistas em darem desgostos a um ministro que tem como colega de executivo um membro do seu agregado familiar – quem sabe não se instala um muro de silêncio à mesa do jantar? – o senhor ministro ou está a gozar connosco ou está amnésico. Como eu quero acreditar na segunda hipótese, a amnésia, recomendo ao senhor ministro Vieira da Silva e já agora também ao senhor secretário de Estado do Ambiente, que tanta fé manifesta nas virtudes do pensamento positivo aplicado às negociações com os sindicatos do sector dos transportes, que releiam o Avante nº 1731 publicado a 1 de Fevereiro, de 2007 em que a sindicalista Anabela Carvalheira (what else?) explica porque “desde Junho de 2006, ocorreram no Metropolitano de Lisboa dez greves”. Como o agora ministro Vieira da Silva também era ministro nesse tempo não deve estar esquecido dessa sucessão de greves, pois não?
Na verdade seja em 2006, 2007 ou 2015 nunca percebemos porque se fazem greves nas empresas públicas. Muito menos porque são elas desconvocadas e convocadas outra vez. No meio da língua de pau que rodeia as negociações sindicais em Portugal já nos aconteceu sermos informados que um governo se comprometera a ceder a um grupo de trabalhadores 20% de uma empresa quando ela fosse privatizada – caso dos pilotos da TAP versus ministro Cravinho em 1999 – ou que uma classe profissional extinta continua a marcar as negociações laborais. É esse o caso fantástico dos factores do Metro de Lisboa.
Lembram-se certamente do tempo em que no Metro, em Lisboa – e nessa época só existia Metro em Lisboa – um funcionário viajava dentro das carruagens? O dito funcionário, em cada estação confirmava se já tinham saído e entrado todos os passageiros e, em seguida, accionava o fecho da porta. Dir-me-ão que isso acontecia no tempo em que a dona Gertrudes Tomaz inaugurava a árvore de Natal do São Jorge. Mais ou menos. Um bocadinho para menos do que para mais: esses funcionários designados factores sobreviveram até 1995. Ou seja os factores deixaram oficialmente de existir no ano em que Ieltsin e Clinton negociavam em Moscovo, se criava o Espaço Schengen, era lançado o Internet Explorer 1, Bobby Robson era o treinador do Futebol Club do Porto.
Como se vê o mundo mudou muito nestes vinte anos, nem sempre para melhor mas mudou. Excepção feita aos factores do Metropolitano de Lisboa, que se tornaram num caso de espiritismo no mundo dito do trabalho pois se algum ingénuo pensou que extinta a função se acabavam os encargos com novos factores desiluda-se: os maquinistas do Metro passaram a receber uma remuneração extra (entre 317 euros e 475,50 euros mensais) pela abertura e fecho das portas das composições.
Mas não só. Os desaparecidos factores são sempre invocados nos acordos de empresa para explicar porque hão-de trabalhar ainda menos tempo os maquinistas. É preciso ter em conta que o horário de trabalho dos maquinistas do Metro de Lisboa está dividido em dois turnos. Mas só num deles os maquinistas dirigem as composições. Na outra metade o maquinista fica na situação de reserva, e pode, quando muito, assegurar manobras das composições nos cais terminais. O que nos leva à pergunta: porque afecta então o Metro de Lisboa tanto maquinista exclusivamente a manobras quando tem todos os dias dezenas de maquinistas parados no cumprimento do seu segundo turno? Não se sabe e também ninguém pergunta.
Mas voltemos aos factores oficialmente desaparecidos em 1995 pois, para lá de terem valido um subsídio para abrir e fechar porta, também caucionam uma redução dos já reduzidos turnos dos maquinistas do Metro de Lisboa. Como bem explicava a “camarada Anabela Carvalheira” no Avante em 2007: “Antes de 1995, quando ainda circulava um maquinista com um factor, já havia, por motivos de segurança, um limite de quatro horas, para a duração máxima de um período de trabalho, numa jornada de 7,5 horas. Ao passar ao regime de agente único, foi acordada com a empresa a redução desse limite para três horas, pois o maquinista passava a circular sozinho, numa tarefa no subsolo, desgastante, muito rotineira e que exige extrema concentração.” Camarada Anabela Carvalheira, face a este argumentário só podemos dar graças por nunca termos tido composições puxadas a mulas porque ainda hoje tínhamos o subsídio dos arreios e a compensação horária devida aos maquinistas pela angústia gerada pela substituição do animal pela máquina!
Feitas as contas não se sabe se não teria sido melhor manter os factores e sempre se ganhava em factor humano. Hoje é motivo de festa encontrar um funcionário do Metro, seja qual for a sua categoria, em muitas das estações (recomendo as de Chelas e do Alto dos Moinhos!) e, mais raro ainda, que uma vez avistado, o funcionário em causa considere caber nas suas funções atender os passageiros. Mas o espiritismo laboral dos factores é apenas uma das muitas coisas que devíamos perceber melhor no fabuloso mundo das empresas públicas de transportes.
No caso dos maquinistas do Metro de Lisboa estes além do que recebem extra para verificarem o fecho e a abertura das portas das carruagens também têm subsídio de quilometragem. Não, não é um prémio por trabalharem muito é simplesmente um subsídio por fazerem aquilo que se propuseram quando se tornaram maquinistas: fazer andar as carruagens. Note-se que caso não façam quilómetros também têm direito a um subsídio de quilometragem. Este naturalmente fixo.
Os trabalhadores do Metro têm prémio por assiduidade e também prémio por receberem prémio de assiduidade. Tantas são as hipóteses de faltar que não comprometem o usufruto do prémio de assiduidade mais o prémio por receber o prémio de assiduidade que se é levado a concluir que só não recebem esses prémios os trabalhadores do Metro que enviarem uma carta com assinatura reconhecida notarialmente dizendo “hoje não vou trabalhar porque não me apetece.”
Apesar de uma das horas de maior fluxo de passageiros ser a que decorre das sete às oito da manhã os maquinistas e demais trabalhadores do Metro de Lisboa apenas iniciam remuneratoriamente falando o seu dia normal de trabalho às 8h o que se traduz por até essa hora receberem o respectivo vencimento mais um acréscimo de 25% da retribuição…
O levantamento dos subsídios e prémios atribuídos pelo Metro de Lisboa nos acordos de trabalho é uma tarefa morosa a que me dedicarei numa qualquer noite de insónia. Mas a leitura desses acordos e da maioria dos textos que povoam o Boletim do Trabalho e Emprego é um dos exercícios mais esclarecedores a que qualquer mortal deste país pode meter mãos. Sobretudo se o mortal em causa acalentar qualquer ilusão sobre ver diminuir a carga fiscal e o Estado particularmente o seu sector empresarial reformar-se.
E sobretudo percebemos melhor o que nos está a acontecer. O que está a acontecer em Portugal é simplesmente a tomada do poder pelas corporações que vivem do Estado e dentro do Estado. Os seja as corporações que, aconteça o que acontecer, desde avanços tecnológicos a reestruturações de serviços, estão sempre blindadas e preservadas de qualquer mudança. Cada uma delas arranjará sempre a figura do factor para justificar o injustificável.
Terminado o PREC, houve que mandar os militares para os quartéis. Terminado este governo de António Costa não sei se haverá capacidade e líderes para enfrentarem as corporações que claramente estão a ganhar (ainda) mais terreno dentro do aparelho de Estado e na direcção dos partidos. A única certeza que tenho é que o factor continuará sempre a existir nos acordos do Metro de Lisboa.