Coitado do adepto. Ele é o último romântico. Ele é o único arrebatado que nos resta. Neste nosso mundo tudo parece mal. Tudo tem deve ser desconstruído. Tudo precisa de enquadramento. Tudo pode ser interpretado doutro modo. Tudo gera indignação nas redes sociais. Só a “mística clubística”, essa espécie de sopa primitiva que liga o adepto ao seu clube, é que não.
A “mística clubística” não é um estado de espírito. É outra coisa. Uma coisa que justifica aos olhos de cada adepto declarações inflamadas, gritos, choros, lágrimas, raiva, explosões de alegria… Repare-se que face às agruras da vida é suposto mantermos o espírito positivo, seja isso o que for. O luto parece mal, se temos uma doença grave o importante é não nos deixarmos abater e lutarmos contra a doença (vão desculpar-me mas acho que as doenças não querem saber das nossas disposições bélicas para nada, simplesmente às vezes aqueles medicamentos cheios de contra-indicações que nunca ninguém elogia fazem efeito e outras não!) De tudo temos de tirar um ensinamento harmonioso. Enfim, garantem nas televisões umas criaturas de ar assertivo, a nossa vida deve reger-se pelo mesmo espírito dos faquires que na nossa infância nos garantiam que se deitavam sem um ai numas camas de pregos e no melhor e no pior devemos aparentar a serenidade (que não a gordura) de um buda.
A excepção a tanto zen, mantra e alinhamento de chakras é o adepto. O adepto chora, grita, berra, porta-se alarvemente, reza, é supersticioso… enfim o adepto exterioriza toda a irracionalidade de que é suposto termo-nos libertado. A isto, que já não é nada pouco, junta o adepto o facto de que ser adepto é o único facto irreversível das vidas humanas neste ano 15º do século XXI. Estranho não é o padrasto das Kardashian ter passado de homem a mulher e as ditas Kardashian passarem a ter uma madrasta onde antes tinham um padrasto e outras criaturas que ganham a vida de forma mais trabalhadora que as Kardashian passarem a ter mães onde anteriormente tinham pais. Estranho, impossível e susceptível de desorientar uma família é um dos seus elementos trocar de clube. Isso senhores é que nunca se viu! Como se pode, por exemplo, confiar no caracter de alguém que trocou o Sporting pelo Porto e este pelo Benfica? Aliás nem se sabe que impacto poderá ter na construção da identidade das crianças ver o pai passar de adepto do Benfica para o Sporting (ou vice-versa, que não quero ofender ninguém!)
Num tempo em que as pessoas não se casam, não namoram e não se traem porque muito assepticamente estão (ou não) numa relação, em que a nacionalidade é um conceito ultrapassado e o cristianismo passou a espiritualidade, o adepto vive a sua circunstância de adepto como os nossos tetravós viviam o casamento e a pátria.
No mundo do adepto como no das paixões de outrora tudo é rápido, imediato, irreversível. Daqui decorre que o adepto seja também aquilo que, falando em português de há umas décadas, se designava como passível de ser encornado. Em boa verdade o adepto é o último encornado da Terra. Já sei que escrever isto pode parecer mal, que até se perdoa que a opinião do Observador seja “diferente” mas por alma de quem lá temos há coisas que é melhor nem as pensar quanto mais escrevê-las!! Mas que fazer? É esta a realidade. Ora atentem no seguinte: o adepto leva uma temporada a defender os jogadores do seu clube, o treinador e os dirigentes. Os adeptos mantêm-se ao lado do seu clube mesmo quando a coisa já vai muito para lá de tudo aquilo que Cristo previu (eu sei que não havia futebol quando Cristo andou na Terra mas também não havia Papa Francisco e não me vêm agora dizer que a escolha de Bergoglio foi o resultado do desacerto festivo dos cardeais e não um plano superior de Deus para nos testar a paciência? Pois passa-se precisamente o mesmo com o futebol!)
Por isso a prova de fogo do adepto e da adeptologia acontece não durante os campeonatos e a disputa daquelas taças que parecem multiplicar-se (as taças estão para o futebol como as distinções para o grafismo dos jornais e as associações de dentistas para os anúncios de dentífricos: há sempre uma à medida de cada um!) mas sim naquelas poucas semanas em que não há jogos e as estrelas do futebol mudam de clube. E como se sabe mudam com estardalhaço! E rapidamente. Pasme-se, não há providências cautelares, nem estudos, nem movimentos cívicos. Aliás nem percebo como é que António Pedro Vasconcelos não interrompe a sua actividade em prol de fazer da TAP a sua querida companhia falida para criar um movimento denominado “NãonosSportinguizemosTreinadores” que conseguiria arrastar pelo menos por um ano a transferência de Jesus do Benfica para o Sporting. Mas enfim, a TAP pode falir, o Metro estar semanas parado, a CP mais tempo em greve que a circular mas ter uma equipa sem jogar e um treinador sem treinar durante uns dias é que nem pensar!
Não quero com isto dizer que o futebol seja um mundo sem lei. Nem pouco mais ou menos. Tem é uma interpretação da lei só sua. Mais ou menos como o Tribunal Constitucional. Aliás desde que o TC chumbou em Agosto do ano passado a Contribuição de Sustentabilidade para a Segurança Social, argumentando que medidas que se baseiam numa taxa pré-definida põem em causa o princípio da igualdade, que não me confrontava com nenhum argumento tão estimulante quanto aquele que, segundo a imprensa especializada, está a ser apresentado pela direcção sportinguista para despedir o treinador que Jesus vai substituir: não ter usado o fato regulamentar! Neste país em que os treinadores se vestem como antigamente se vestiam os notários, os notários andam de chinelos e os funcionários administrativos de calções, um treinador foi dispensado porque apareceu de fato de treino! (pensava eu que o fato de treino era por excelência o fato dos treinadores. Mas pelos vistos estou enganada!)
Mas voltemos a esse momento em que os jogadores e os treinadores são filmados a sair das instalações do clube que até há escassos segundos era o seu e pelo qual, dizem, mordiam a relva. Claro que não saem de uma forma qualquer. Saem ao volante de uns automóveis que pela imponência devem fazer só para eles, no meio de um túnel de jornalistas. E é nesse momento que eu me rendo diante do mistério do adepto. Como é que perante aquele cortejo não ocorre aos adeptos que até a treinos assistem (treinos senhores!!) que também eles podiam mudar de clube?! Pegavam nas bandeirinhas, nos cachecóis e no resto da tralha e iam gritar para outro lado?! Não lhes pagam milhões para o fazer mas também não lhes pagam nada para ficar. Antes pelo contrário o adepto paga para ficar e é precisamente desse seu ficar que brotam todos aqueles milhões que sustentam o circo do futebol, transferências incluídas!
Estou em crer que um súbito bom senso cairia sobre os estádios caso se temesse que no fim da época os adeptos se transferissem para outras paragens. Mas não. Os adeptos ficam, resistem, sofrem e cumprem o seu papel de adeptos. Assim os benfiquistas que transformaram o relativismo numa ciência exacta para tornarem compreensíveis o cabelo de Jorge Jesus, o vocabulário de Jorge Jesus e Jorge Jesus ele mesmo vão fazer o mesmo exercício com o treinador que lhes couber em sorte (ou azar) na próxima época. Já os sportinguistas, que fiéis à origem social do seu clube têm ridicularizado o dito Jesus, vão levar os próximos meses a defendê-lo e a descobrir-lhe facetas interessantes, coisa que valha a verdade até nem é difícil pois Jorge Jesus além da benção do nome, partilha com Jerónimo de Sousa a capacidade de parecer um simpático popular, daqueles a quem a decência obriga a tratar com deferência porque são povo. (Isto apesar do ordenado primeiro, Jorge Jesus, parecer quase uma parcela das contas do programa eleitoral do PS conta para reequilibrar a perda da TSU, e o segundo, Jerónimo de Sousa, ser o que de mais próximo temos de um político profissional, dependente de uma máquina partidária desde que saiu da tal oficina de metalurgia onde foi tão vagamente metalúrgico quanto qualquer um de nós foi vagamente lavador de pratos pelo simpes facto de ter trabalhado num café na adolescência)
Valha a verdade que os adeptos não estão sós nesta sua idiossincrática circunstância. Com eles, os adeptos, estão os dirigentes que seriam uma espécie de adeptos elevados ao cubo não se desse a particularidade de os dirigentes terem as vantagens inerentes a esse estatuto. (Já se cruzaram com um dirigente desportivo numa dependência bancária? Eu já, com Vale e Azevedo. Não se esquece!) Ora sendo a condição dos adeptos e dos dirigentes determinada pelo verbo ficar os dirigentes, ao contrário do que sucede com os adeptos, têm o seu momento de euforia não nas vitórias mas sim nas contratações. É aí, quando contrata e despede, que o dirigente desportivo tem o apogeu do seu poder. Sem as pernas dos jogadores nem o talento dos treinadores, ao dirigente resta o poder de contratar e rescindir. E mais uma vez o adepto lá está a tentar explicar uma coisa e o seu contrário. Por exemplo, Jorge Jesus para sempre no Benfica, Jorge Jesus não faz falta alguma, Jorge Jesus aquele gajo quem nem sabia falar enquanto foi treinador do Benfica mas que até tem quadros da Paula Rego desde que foi para o Sporting…
Por isso, agora que Jesus foi para o Sporting, que Marco Silva protagoniza um estranho caso na jurisprudência portuguesa – o caso do treinador que vestiu fato de treino – aconselho os adeptos a lerem Marx “uni-vos, vós não tendes nada a perder a não ser vossos grilhões” ou numa versão bem mais poética e provavelmente mais acertada a tentarem colocar os nomes de Luís Filipe Vieira, Jorge Jesus, Bruno Carvalho, Marco Silva, Rui Vitória, Álvaro Sobrinho e Pinto da Costa no poema de Carlos Drummond de Andrade:
“João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.“