Os circos bons não têm qualquer interesse, e aliás os circos maus também não. No entanto, seguir um número de acrobacia num circo mau é uma experiência emocional muito mais complexa que num circo bom. Enquanto no circo bom temos uma confiança fundada na eventualidade de os acrobatas fazerem mais ou menos aquilo que tencionam, e tudo se parece com patinagem artística (a actividade mais engenhosa, com excepção do genocídio, a que um ser humano se pode dedicar), num circo mau a emoção consiste em temer que o inevitável aconteça, e depois assistir à concretização dos nossos piores receios. Seguimos assim com piedade e horror os acrobatas, e é com alívio que, depois de um tempo infindo em que se despenharam com método, os vemos levantar-se do chão uma última vez. Podemos voltar para casa.
A única outra actividade que suscita emoções tão extremas por parte dos espectadores é o debate público em Portugal. Aqueles que apreciam o género deleitam-se e horrorizam-se com o modo como a cada frase, a cada alternativa, a cada ligação entre frases, a cada razão apresentada, os oradores escrupulosamente acabam por ir atrás de trapézios que não existem e aterrar exactamente onde não querem. A exibição de argumentos em público, oral ou escrita, pode ser caracterizada, por analogia com o circo, do seguinte modo: os escritores ou os falantes dão saltos e caem do alto dos seus próprios saltos.
Bem entendido, a ausência de progressão, se por um lado os coloca nos antípodas da patinagem artística, por outro é duramente compensada pela duração do espectáculo. Nenhum argumento é menos que eterno, nenhum artigo ou nenhuma imagem suscita menos de mil palavras, nenhuma intervenção breve dura menos de vinte minutos. Durante esses períodos, em que se pode ouvir os continentes a mudar de posição, os artistas esforçadamente dão pinotes e despenham-se. Compensam o pouco que sabem com o mal que fazem.
Partilham com os acrobatas do circo mau não apenas o modo como as suas desgraças são largamente auto-inflingidas como sobretudo uma grande indiferença por quem possa estar a assistir. Não agem contudo por sobranceria mas por ansiedade. A sua ansiedade, que é verbal, lógica e intelectual, é grande demais para lhes permitir imaginar que quem os ouve ou lê tenha mais que fazer. Nunca conseguem fazer nada à primeira e por isso tentam uma segunda e uma décima-terceira vez. As suas opiniões, espasmos, desabafos e discursos são assim ensaios constantes das ideias que não tiveram, das relações que não perceberam e de tudo o que não escreveram.
Alguns, em boa verdade, apresentam-se cheios de lantejoulas e plumas, e com as sobrancelhas arranjadas; durante alguns segundos julgar-nos-íamos numa matinée em Moscovo. Mas, passada essa decepção inicial, e ao seu primeiro salto, o universo reconstrói-se-nos sem ideal nem esperança e o debate público, como um circo mau, prossegue o seu curso.