Foi apenas há dois anos, mas muitos parecem esquecidos. Ricardo Salgado, com a corda na garganta, fez o habitual: ligou à ministra das Finanças, depois ao primeiro-ministro. Objectivo? Conseguir um empréstimo da Caixa Geral de Depósitos que lhe desse a ilusão de que ainda podia salvar um grupo afogado em dívidas. Antes já tinha conseguido que os seus amigos na administração da PT lhe dessem uma mão, assim afundando aquela que chegou a ser a maior empresa nacional. Só que agora nem sequer a conspícua ideia de que seria possível “por o Moedas a trabalhar” surtiu qualquer efeito: nem Moedas, nem Maria Luís, nem Passos Coelho permitiram que a Caixa “desse uma mão” a Ricardo Salgado e ao Grupo Espírito Santo. Ou, visto a esta distância, não permitiram que a Caixa se enterrasse ainda mais, acompanhando na desgraça um grupo que estava condenado por megalomania, excesso de endividamento e fraudes várias.

O que se passou há dois anos rompeu uma regra – a regra de que os governos usavam a Caixa a seu bel-prazer, lhe davam ordens políticas e a viam como uma espécie de coutada para recompensar alguns ex-ministros ou realizar negócios de duvidosa rentabilidade mas garantido alcance político.

A promiscuidade atingiu o seu apogeu no tempo do governo que nos conduziu à bancarrota e a forma de actuação foi em tudo coerente: o desvario que colocou o país nas mãos da troika foi o mesmo desvario que levou a Caixa a envolver-se em negócios ruinosos; a obsessão pelo poder que levou o governo de Sócrates a aldrabar contas e distribuir benesses foi a mesma obsessão pelo poder que levou esse mesmo Sócrates a utilizar a Caixa para controlar a banca e, através dela, tentar controlar também toda a comunicação social.

É por isso que é bom ter memória e, se preciso for, dedicarmo-nos um pouco à arqueologia. Um país onde o governo se recusa a aprender com os erros do passado, ou recusa mesmo admitir que eles tenham existido, é um país condenado a sofrer repetidamente as dores da queda no abismo.

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É por isso também que convém recordar alguns factos, entre os muitos que merecem ser melhor apurados e outros tantos que necessitam de ser investigados.

Primeiro que tudo, no país onde se grita que “os bancos são demasiado importantes para serem deixados ao cuidado dos banqueiros” é bom ter consciência que, entre o que o Estado já teve de colocar na Caixa Geral de Depósitos e os quatro mil milhões que agora aí vêm, estamos a falar de muito mais dinheiro do que o envolvido em qualquer dos resgates de outros bancos, mesmo daqueles que foram escândalo público, mesmo dos que configuraram crime grave. Pior: uma parte do lixo da Caixa Geral de Depósitos foi varrido para dentro do BPN no tempo em que, depois da nacionalização, esse banco foi colocado na bizarra situação de estar sob a alçada da CGD. As perdas do BPN (administrado por Francisco Bandeira, também ele um homem da confiança pessoal de Sócrates) no período pós-nacionalização são, de resto, uma das histórias mais mal contadas e mais omitidas de todo o conturbado processo desse banco e uma parte da factura que já tivemos de pagar para “limpar” o balanço do banco público.

Por tudo isto, o que temos por certo é que a CGD já custou muito dinheiro aos contribuintes e vai custar ainda mais, e muito do que custou não é consequência da “conjuntura”, antes de decisões de gestão que foram políticas em vez de serem financeiras. Aqui a culpa não foi dos banqueiros.

Depois é bom ter presente o que se soube nos últimos dias sobre alguns dos créditos mal parados ou incobráveis da Caixa, estimados em 2,3 mil milhões de euros. É bom recordar a forma como a nomeação de Armando Vara para a administração da CGD, em 2005, com Santos Ferreira, provocou a demissão do primeiro ministro das Finanças de José Sócrates, Campos e Cunha. É bom lembrar como essa administração foi instrumental em alguns negócios emblemáticos desses anos, como o da La Seda em Sines, que acabaram muito mal, ou então como o de Vale de Lobo, hoje a ser investigado por suspeitas de corrupção. Ou como foi com essa administração que a Caixa financiou o assalto ao BCP, para onde depois passariam os inevitáveis Vara e Santos Ferreira, pela mão de figuras como Joe Berardo ou Manuel Fino e tendo António Mexia (sim, ele mesmo) como mestre-de-cerimónias. Ou ainda como tudo era feito nesses anos em conluio com o “dono disto tudo”, a quem a Caixa de Vara e Santos Ferreira ajudou no processo da OPA da Sonaecom à PT. Ou a forma como o BCP, mais essa espécie de ponta-de-lança do Grupo Espírito Santo que era a Ongoing, mais Sócrates e mais Vara, conspiraram (é o termo, pois já conhecemos quase todas as escutas) para controlar a comunicação social, fosse a incómoda TVI, fosse o grupo do “amigo Oliveira” (Diário de Notícias, TSF, Jornal de Notícias), fosse tentando calar o Sol.

A Caixa, e depois o BCP, e depois o nacionalizado BPN no seu estertor final e demencial, foram os instrumentos não apenas de um modelo de desenvolvimento em que o primeiro-ministro intervinha directamente na selecção e promoção de negócios privados, como de uma estratégia de poder que passava por silenciar todas as vozes críticas, como ainda, sabemos hoje, por uma sede de fortuna pessoal.

No dia em que foi conhecida a nomeação da administração de Santos Ferreira e Vara para a Caixa Geral de Depósitos escrevi um texto intitulado “Eles comem tudo?” que começava recordando um princípio simples dos nossos regimes: “Uma das regras de ouro da democracia liberal é o princípio do governo limitado”. Ora esse princípio estava a ser contrariado na CGD, na qual o primeiro-ministro passava a ter, através de Armando Vara, uma espécie de “braço armado”. Estava porém longe de imaginar até que ponto os poderes ilimitados do grupo que nos governou entre 2005 e 2011, quando por fim entregou o país nas mãos da troika, se juntariam a outros poderes fáticos, como os do antigo “dono disto tudo”, para conduzirem Portugal por um caminho de que só a muito custo e com muita dor nos arrancámos. Um caminho que entretanto deixou muitos cadáveres pelo caminho, como a PT, primeiro fragilizada pelo poder político que impôs a desastrosa entrada na Oi, depois arrastada para o fundo por ter ido em socorro de Ricardo Salgado.

Durante muitas décadas a Caixa foi suficientemente grande e rica para se prestar a todas as megalomanias – de que é exemplo paradigmático o seu edifício sede – sem que isso afectasse demasiado os seus resultados. Durante essas décadas a Caixa também pode ser o “banco público” sem que se visse realmente onde fazia a diferença para os bancos privados no que respeita ao financiamento da economia. Essas décadas acabaram – acabaram por causa da crise financeira e acabaram pelo lastro deixado, nas contas e no balanço da CGD, pelos “negócios” dos anos de desvario. Nela alguns políticos provaram ser capazes de ser tão ou mais tóxicos do que alguns banqueiros de má memória, o que de resto nem sequer é muito original, pois sucedeu o mesmo noutros países, como na vizinha Espanha. Ter disso consciência clara não é querer abrir caminho para nenhuma mudança de titularidade no capital do banco do Estado, é apenas querer ter os olhos bem abertos.

Regresso por isso ao episódio que recordei a abrir este texto. A Caixa Geral de Depósitos de que necessitamos não deve ser apenas um banco bem gerido e bem capitalizado – tem também de ser um banco protegido das interferências governamentais. Em 2014 isso aconteceu porque um primeiro-ministro foi capaz de dizer não ao até então “dono disto tudo”; no futuro o que quero é que nenhum primeiro-ministro possa dizer sim mesmo ao mais modesto e bem intencionado dos investidores.

Eu sei que estou a pedir muito, pois infelizmente conheço o meu país e os hábitos das suas elites e dos seus políticos. Mas sei que só estou a pedir algo que faria de Portugal um país um pouco mais moderno, um pouco mais aberto e um pouco menos oligárquico e paternalista.

PS. Já depois deste artigo escrito e publicado, o ex-primeiro-ministro José Sócrates veio queixar-se, mais uma vez, a enésima vez, de que está a ser vítima de um assassinato de carácter. Será que pensa realmente que ainda lhe dão ouvidos?