A polémica com o livro de Valter Hugo Mãe nas recomendações do Plano Nacional de Leitura trouxe-me à memória aquele verão, tinha eu quinze anos, em que li, às escondidas da minha entidade maternal, esse grande clássico que é o Fanny Hill, com o subtítulo Memórias de Uma Mulher de Prazer. O meu secretismo nesta leitura foi gigantesco, de dimensão semelhante apenas ao da evidente descontração, mesmo desinteresse, da dita entidade maternal para com a minha leitura secreta.
Como sou a mais nova de irmãos uns bons anos mais velhos, também pude felizmente usufruir da leitura de alguns dos seus livros, narrativas verdadeiramente vergonhosas que eu lia avidamente (como qualquer boa adolescente). Afinal apanhei ainda um bocadinho do final dos anos oitenta, tempo de excessos e de gosto questionável. Claro que também li obras de maior gabarito que giravam à volta das sexualidades e dos desejos (bem, não giram todas?). O Amante, de Marguerite Duras. As Ligações Perigosas, de Chaderlos de Laclos. D.H. Lawrence – cujo A Virgem e O Cigano me desiludiu, pelas razões que as pessoas que já leram A Virgem e O Cigano facilmente imaginam. E por aí adiante.
Talvez por todas estas leituras tenha reputado o livro que estudámos no 8º ano – Os Fidalgos da Casa Mourisca, de Júlio Diniz – bastante sensaborão. O único pormenor que retenho desta obra é, difusamente, que um dos filhos da família arruinada casou com uma prima viúva endinheirada mais velha. Provavelmente porque esta inversão das normas estabelecidas e da boa moral – ela mais nova que ele – indiciava uma atração sexual que é sempre a força mais disruptiva do mundo. À época, felizmente, não se recomendavam livros para as férias, eu podia ler o que me apetecia e, assim, escapava a secas professoralmente infligidas.
Isto tudo para dizer que não me choca que adolescentes de treze anos leiam Valter Hugo Mãe, com as suas frases polémicas que lemos nos últimos dias. Eu nunca li nada de Valter Hugo Mãe, não adquiri grande vontade, e, sobretudo, tenho demasiados livros que quero mesmo, mesmo ler e que permanecem fielmente à espera da minha atenção na mesa de cabeceira e nas estantes lá de casa. Mas o autor escreveu um post no Facebook bastante consequente sobre este escândalo. E se, como diz, no livro estas frases provocam sofrimento à criança, então são mesmo pedagógicas: mostram que palavras fortes de conteúdo sexual são muitas vezes usadas para magoar. E que isso merece julgamento moral. Por mim, nada contra.
Mas, claro, também não tenho nada contra os pais que objetam a uma ou outra palavra crua nas leituras dos seus filhos. É conveniente começarem já uma petição para banir Gil Vicente da poluição educativa que se oferece às crianças, bem como a referência, quando se fala de Bocage, das suas Poesias Eróticas, Burlescas e Satíricas –, mas cada um sabe aquilo que prefere que os seus filhos leiam.
Em todo o caso – não podia deixar de ser – tenho bastante contra uma geringonça do calibre de um ‘plano nacional de leitura’. Atenção: parece-me bem que se forneçam leituras de apoio aos conteúdos das várias disciplinas; e que para as aulas de português haja certas balizas entre as quais os professores possam escolher.
Mas por que diabo o Estado tem de recomendar leituras aos pobres cidadãos menores para os seus tempos livres? A que propósito uma escola manda os alunos lerem o livro tal e tal nas férias de Natal? Não era mais divertido, e respeitador da individualidade dos alunos, deixá-los escolher (pelo menos os que quisessem escolher)? E de seguida até verificar o que cada um havia escolhido e porquê? Havendo sugestão (repito: sugestão) de leituras, não poderiam ficar a cargo de cada professor ou de cada escola? Supomos que os educadores não sabem escolher livros para cada turma, sem necessitar de grandiosos planos? Não chega já de formatação, com os conteúdos programáticos iguais nos nossos oitenta e nove mil quilómetros quadrados, e dados da mesma forma? O Estado precisa de nós tão arrumadinhos a ponto de todos lermos os mesmos livros, independentemente de gosto e interesse? E que disparate é esse de serem os burocratas do Ministério da Educação a decidirem qual é a idade adequada para ler que livro (já descontando lapsos informáticos)?
A minha alma liberal fica logo em pé de guerra porque os burocratas do dito ministério querem chatear os meus filhos mais do que eu no assunto ‘livros que devem ler’. Não deixo. Ainda este fim de semana, numa livraria do Chiado, acompanhada das minhas duas crianças, comprei uma tradução do Northanger Abbey, de Jane Austen. (Felizmente traduzido para A Abadia de Northanger, que não há maleita pior que tradutores espevitados.) Referi ao meu filho mais velho que a compra era motivada pela vontade que lesse o livro, porque eu já tenho várias edições em inglês. O rapaz espigadote reclamou que não ia ler ‘coisas femininas’. Claro que lá levou o ralhete versando uma escritora não escrever só para mulheres, nem só ‘coisas femininas’, e Jane Austen ser um dos grandes autores de sempre.
Enquanto jantávamos, expliquei que A Abadia de Northanger era uma sátira (também expliquei o que é uma sátira) aos romances góticos, que Jane Austen escreve com um humor fino imbatível e alinhavei-lhe a história. Lemos as primeiras duas páginas, onde consta a divertida descrição de Catherine Morland, a protagonista, e da sua família. Resultado: quer ler o livro já a seguir.
Como veem, burocratas do Ministério da Educação, eu bato-vos aos pontos quanto a sugestões de leituras. Pelo que, parafraseando um estadista recentemente falecido, desapareçam.