Se fosse uma personagem de ficção, o dr. Costa seria exagerado e o seu autor arrasado pela crítica. Ninguém acreditaria em criatura tão primária e paródica. O dialecto é demasiado pobre. O oportunismo é demasiado infantil. O provincianismo é demasiado caricatural. O descaramento é demasiado forçado. A ambição é demasiado brutal. A manha é demasiado ostensiva. O ridículo é demasiado evidente. A perversidade é demasiado tosca. O estilo é demasiado repulsivo. A boçalidade é demasiado boçal. A desumanidade é demasiada, ponto. Tudo no dr. Costa, das roupas aos risos e dos truques às palavras (digamos), se confunde com um boneco, ou o estereótipo superficial de um político grotesco.
O dr. Costa, em suma, é mau demais para ser mentira. Infelizmente, como estamos em Portugal, é péssimo o suficiente para ser verdade. E a crítica da especialidade, que alucinadamente começou por atribuir ao homem inconcebíveis virtudes, ainda não terminou de venerá-lo – apenas conteve a veneração durante a semana, já que, parecendo que não, cento e tal mortos sempre impõem algum recato.
É certo que nos longos anos que leva de “carreira”, que aliás recorda com misterioso orgulho, não faltam provas do – desculpem o termo – carácter do dr. Costa. Porém, a fim de evitar canseiras, a trágica cronologia dos incêndios de 2017 chega e sobra para fundamentar um argumento.
A título de contexto, há o passado do dr. Costa na Administração Interna, onde cometeu a proeza de agravar trapalhadas herdadas do dr. Santana e, com típica leveza (para dizer o mínimo), consagrou o SIRESP às três pancadas e, por influência de um amigo e da impunidade, adquiriu os portentosos Kamov. E há o radioso momento em que, semanas antes do último Verão, o dr. Costa trocou as chefias da Protecção Civil por amigos (ele tem muitos) de reconhecida competência. E há Pedrógão Grande. E há a resposta do dr. Costa às vítimas de Pedrógão Grande, abandonadas a protectores que não protegem, um sistema de segurança que não funciona e helicópteros que não voam enquanto Sua Excelência desfilava calções e compaixão numa praia espanhola. E há a conversa fiada e as promessas reles que o dr. Costa despejou sobre os escombros de uma das maiores calamidades registadas do género. E há, quatro meses depois, uma calamidade quase idêntica em dimensão e incúria. E há a criminosa arrogância do dr. Costa, que, inchado pela vitória nas “autárquicas”, redobrou o desdém face aos que o maçam com ninharias (“Ó minha senhora, não me faça rir a esta hora”). E há a pedagógica “comunicação” ao país, na qual exibiu um cinismo que, em cérebro superior ao de um laparoto, talvez sugerisse indícios de psicopatia. E há a demissão, em último recurso, da ministra da Administração Interna, uma inultilidadezinha versada em disparates, e o tapete de que o dr. Costa se serviu para esconder o lixo. E há a substituição da ministra em prol de um amigo do dr. Costa (não disse que são imensos?), garanhão celebrizado por chamar “frígida” a uma adversária. E há, sobretudo, a reacção apressada ao ralhete do prof. Marcelo, encenada numa sessão parlamentar em que o dr. Costa tentou fingir que chorava e conseguiu demonstrar aos distraídos o indivíduo extraordinariamente lamentável que de facto é.
E agora? Nada de especial. É verdade que, ao mesmo tempo que os fiéis do dr. Costa hesitavam entre louvar o dr. Costa, simular críticas que “legitimassem” louvores futuros ou culpar Trump e o PSD pelas chamas, meia dúzia de socialistas confessaram embaraço tardio e parte do povo resmungou impropérios. Mas só. Recentemente, na Galiza, quatro cadáveres carbonizados bastaram para que multidões saíssem à rua. Por cá, as exéquias fazem-se na televisão: nem uma centena e tanto de mortos remove os portugueses de casa. E em será em casa que, se não houver bola, na terça-feira os portugueses assistirão à moção de censura do CDS ser rejeitada pelos votos do PS, do PCP e do BE. Faz sentido. O dr. Costa alcançou o poder amparado em organizações historicamente indiferentes, ou até avessas, à vida humana. É natural, e um retrato adequado da personagem, que o preserve por igual via. Quem aceita o assassínio de milhões nunca se incomodaria perante dezenas de baixas descartáveis e remotas. Isto faz, repito, sentido. O que não faz sentido é que o dr. Costa se julgue no direito de governar pessoas minimamente saudáveis ou sequer de conviver com elas. O que não faz sentido é que a sociedade que tolera ou defende tamanho monumento à baixeza se imagine civilizada. O que não faz sentido é que esta apatia com fronteiras se suponha um país.
Nota de rodapé:
Numa medida que já tardava, o PCP impôs ao Parlamento a protecção legal do arroz carolino. Além de também ser a minha gramínea favorita, folgo em ver os camaradas ortodoxos arriscarem o trilho do puritanismo até agora reservado aos camaradas heterodoxos do BE e a uma dúzia de camaradas envergonhados do PS. Por outro lado, deve reconhecer-se que a gloriosa experiência dos comunistas em matéria de dietas não nasceu hoje: há por ali sapiências ancestrais que tornam o emagrecimento inevitável. São muitos anos a virar frangos, ou, mais precisamente, a trocá-los por senhas de racionamento.