Há dois organismos estatais pelos quais eu nutro um amor desmedido: a ASAE e a Autoridade para as Condições de Trabalho. São duas ‘autoridades’ (só o nome incita à rebelião) dedicadas à mais nobre função do estado português: multar empresas – mesmo (ou sobretudo) quando as empresas não têm comportamentos lesivos para consumidores ou trabalhadores. Manda a seriedade dizer aqui que por ‘comportamentos lesivos’ não estou a considerar a definição de ‘lesivo’ do estalinista médio, para quem a mera existência de empresas e consumidores já é lesiva.
Para ilustrar a ASAE socorro-me de casos que o blogger Helder Ferreira contou sobre clientes seus que foram multados aos milhares de euros. Os pecados fulminantemente mortais? As etiquetas do preço de umas carteiras estavam dentro das próprias carteiras, um sinal de proibido fumar estava pousado num móvel em vez de afixado na parede e óculos exibidos num expositor fechado cuja etiqueta com o preço (são pequeninas) não era visível fora do expositor.
Há que louvar tanto fervor fiscalizador, de resto essencial para a saúde mental das populações. Imaginem um consumidor mais arrebatado que se apaixona por uns óculos ao vê-los num expositor. São inimagináveis os danos provocados nesse consumidor pelo tempo que decorre até o vendedor da loja lhe comunicar o preço. Ou pela espera excruciante a que é obrigado se o vendedor tiver de abrir o expositor para o informar. Parece-me evidente que qualquer estado respeitador dos direitos humanos tem de evitar a todo o custo experiências traumáticas como estas aos seus cidadãos. Demos graças pela ASAE. E pelos legisladores que inventaram tais imposições legais, os que não as revogaram e quem deu poderes à ASAE para os fiscalizar.
Felizmente não somos os restantes países europeus (uns bárbaros), cheios de montras que não ostentam os preços dos seus produtos (omissão que nós, civilizadíssimos, punimos com multa de milhares de euros), obrigando os consumidores a entrarem nas lojas se os quiserem saber. Ou albergam lojas de marcas de luxo onde se vendem, lado a lado numa intolerável promiscuidade, produtos de ouro e prata e roupa, sapatos, carteiras e toda uma panóplia de acessórios. Por cá não é permitida tal rebaldaria: ou vende produtos de ourivesaria ou vende acessórios e roupa, não vá uma pessoa confundir-se e gastar numa capa para o ipad o dinheiro dos botões de punho em prata com ónix que ia dar ao marido no aniversário.
Da ACT podia contar o caso de um cliente que teve uma multa de 6000€ à conta de burocracias e acabou fechando a empresa. Mas é mais inspiradora a visita de boas-vindas da ACT à minha empresa quando nos instalámos fora de Lisboa. Procuraram incansavelmente as grilhetas com que acorrentávamos os trabalhadores, os alçapões onde armazenávamos sarawaks em regime de escravatura, exigiram envio de documentação absurda que nada tinha a ver com recursos humanos. (Eu aconselhei desobediência e uma carta ao Provedor de Justiça queixando-nos do abuso da ACT, mas há gente mais conciliadora do que eu na empresa.)
Finalmente veio o veredicto: obrigavam-nos a colocar um banco na casa de banho do pessoal de armazém. (E, bondosos, não multaram).
Perante isto, se no passado fim de semana se sentiu incomodado porque o governador do Banco de Portugal deu antes informações que sabia estarem erradas sobre a solidez do BES, se estranhou que mantivesse em funções quem sabia ter montado um ‘esquema fraudulento’ no GES, se considerou incompetência crassa autorizar um aumento de capital no BES quando já havia indícios de irregularidades superiores às comunicadas aos mercados, deixe lá de ser picuinhas.
Há que mostrar trabalho de fiscalização em algum lado e as PME são um alvo tão mais fácil. Com as PME não se corre o risco de vir a precisar que dêem empregos; e Portugal é uma casca de noz e os grandes empresários e banqueiros e os políticos e reguladores encontram-se todos nos mesmos sítios. Criar mau ambiente (só porque uns fiscalizam outros) em eventos sociais é que não poder ser. Já os pequenos e médios empresários, esses arrivistas, quem são?
As prioridades são cristalinas, os recursos não chegam para tudo e ao estado não se pode exigir fiscalização efetiva a bancos (delegada no BdP), e com a desculpa esfarrapada de ser um setor fundamental para a atividade económica, porque está ocupado a acautelar bens maiores. Exemplos: garantir que não decorre tempo entre ver um objeto e saber o seu preço e assegurar que um trabalhador pode sentar-se a descansar no caminho entre o urinol e o lavatório.