Não fosse o celebérrimo bacalhau assado do “Fuso” e o concelho de Arruda dos Vinhos seria tão conhecido dos leitores como Sobral de Monte Agraço, Cadaval ou Alenquer. Arruda dos Vinhos é um concelho agrícola da chamada zona Oeste, no distrito de Lisboa a cerca de 40 km do centro da capital, numa zona de difíceis acessos e, por isso, ainda não atacada dos bairros de moradias de subúrbio.
O mistério que ataca este pacato concelho prende-se com a estranha composição genética da sua população. Por algum acaso da natureza, o concelho de Arruda apresenta resultados escolares muito estranhos a nível nacional. Porque é que digo que deriva da composição genética da população? Vejamos, o concelho está longe de ser um dos mais ricos do país. Se compararmos com o concelho de Lisboa, o mais rico de todo o país, a população de Arruda tem uma performance escolar melhor que todas as escolas públicas da capital. Ora, Arruda é, tirando Alenquer, o concelho com o poder de compra per capita mais reduzido de todos os do distrito de Lisboa e ocupa o lugar 71 entre os 308 do país.
Por outro lado, se formos comparar com o concelho de Oeiras, o mais educado de todos os concelhos do país e o segundo em poder de compra per capita, nenhuma escola consegue chegar aos pés da população de Arruda. Ora, sabendo nós que os resultados escolares são essencialmente determinados pela condição social e cultural das famílias e Arruda está muito longe de ser o nosso Silicon Valley, só uma conclusão se pode tirar daqui. A biologia pregou uma partida aos portugueses e desenvolveu nos vales vinícolas da Estremadura uma singular estirpe de Homo sapiens cuja capacidade escolar ultrapassa em muito o vulgo. E, curiosamente, foi muito localizado. Se olharmos para os concelhos vizinhos de Sobral, Cadaval, Alenquer ou Mafra, a estirpe de super alunos parece não se ter propagado, dado que os resultados escolares nestes concelhos não se comparam. Outra explicação, que os sociólogos não concordarão, prende-se com o facto de a única escola do concelho de Arruda ser uma escola com acordo de associação chamada Externato João Alberto Faria, a 48ª melhor do país, a acreditar nos resultados do secundário.
Eu comecei a interessar-me pela história do Externato quando dois jovens oriundos de Arruda começaram a trabalhar comigo. E, um dia, por acaso, um deles deixou escapar que durante a vida escolar pré-universitária nunca percebeu o conceito de “furo”. Por alguma razão estranha, os professores dos alunos de Arruda não faltam, não fazem greves, não vêm para Lisboa em defesa da escola pública. Estas pobres crianças são sujeitas à inacreditável tortura de terem as aulas que estão marcadas no horário. E perguntei: mas quanto é que custava o externato? Nada. Apesar de ser privado, o Ministério da Educação paga para todos os alunos do concelho poderem ter aulas no externato e, por isso, é público. Como é a única escola do concelho, nem sequer podem selecionar os alunos que querem, como acontece com as escolas de Oeiras, por exemplo, que num esquema simples de afunilamento vão atirando os alunos mais fracos para escolas “lixeira”, deixando os bons alunos nas “boas” escolas.
Em tempos, o Ministério da Educação resolveu alterar este “vergonhoso” estado de coisas naquela terriola saloia e tentou iniciar a construção de uma escola do Estado em Arruda. A pronta intervenção da câmara municipal e dos cidadãos, que exigiram judicialmente ao Ministério a publicação dos custos por turma nas escolas do Estado que justificasse a construção, evitou que a escola fosse construída e a educação da população foi protegida até hoje. O custo para o Estado é, curiosamente, inferior ao Orçamento do Estado para a educação a dividir pelo número total de turmas no país, o que significa que fica abaixo da média do custo de uma turma nas escolas do Estado. E isto sem contar que as escolas privadas pagam TSU e as escolas do Estado não, o que significa que, se contarmos com o proveito da segurança social, uma turma no Externato João Alberto Faria custa menos 25% daquilo que custa uma turma nas escolas do Estado dos concelhos vizinhos, cujos resultados escolares as colocam 200 a 400 lugares abaixo no ranking de 2016.
Em termos de “ciência sociológica”, o caso de Arruda dos Vinhos é aquilo a que se chama “uma maçada”. Afinal, há um concelho cuja totalidade da população, ricos e pobres, cultos e incultos são servidos por uma escola privada que presta o serviço público e, pasme-se, os resultados ultrapassam consideravelmente os do concelho mais ricos e com mais educação do país, com o maior número de licenciados, mestrados e doutorados e cujas escolas são do estado. Mas, ao contrário dos ilustres académicos destas “ciências”, não vou cair no erro de achar que os professores são melhores ou piores dependendo de quem assina a sua folha salarial. Mas vou dizer que o profissionalismo deles depende. E é isso que está em causa.
O caso do Externato de Arruda mostra que, sem selecionar alunos, é possível ter bons resultados. O que se calhar não é possível, é tê-los sem selecionar professores. Como o Externato recebe menos do Estado que as escolas do Estado e, nesse bolo, ainda tem que pagar TSU, é relativamente óbvio que os professores do Externato terão que receber menos que os seus colegas do Estado, se viverem apenas daquilo que o contrato de associação permite. A lógica económica diz-nos que os melhores professores seriam então aqueles que estão no Estado porque podem ganhar mais. Mas os resultados dizem o contrário, que os bons professores são os que estão no Externato de Arruda. A resposta terá de vir de onde metemos menos dinheiro e apresenta melhores resultados. Os professores do Estado não estão à altura dos professores do Externato de Arruda, apesar de ganharem mais.
Como pai, tenho um filho numa escola do Eestado e um filho numa escola privada. Como ambos têm os mesmos pais, digamos que estão em igualdade de circunstâncias, socialmente falando. Vêm de uma casa de rendimentos razoáveis com mais graus académicos que 99% das restantes casas do país. O primeiro, de carácter mais reservado e cumpridor, manteve-se na escola do Eestado até à universidade, sempre nos quadros de honra. O segundo, mais dado à festa, teve de ser colocado numa escola privada porque as notas estavam sempre em perigo. São os professores da escola privada mais conhecedores da matéria que os da escola do Estado? Vamos ser razoáveis, se pomos em causa os conhecimentos a este nível de pessoas licenciadas então mais vale mudar de país. A resposta é, obviamente, não. Os professores do Estado são tão, ou mais, conhecedores da matéria que os seus colegas do privado. Mas entre os meus filhos a diferença também não se coloca nesse nível porque, como imaginarão, em casa deles não falta quem os possa ensinar.
O que diferencia os professores pode ser resumido numa frase muitas vezes repetida entre os professores do Estado que é “sou pago para ensinar, não sou pago para educar”. O simples pronunciar da frase deveria ser justa causa de despedimento, porque ensinar sem educar fazem milhares de vídeos no YouTube, que têm pessoas bem mais qualificadas que quem diz a frase, a darem aulas muito melhor estruturadas. Um professor que assume que é pago para educar é um profissional e a diferença do Externato de Arruda, da escola privada onde o meu filho anda e a escola do Estado onde o meu outro filho andou, é essa. O meu filho que andou na escola do Estado até ao fim, não precisava de um professor profissional porque, na verdade, nem de professor precisava. Uma escola que só serve para alunos assim, não serve para nada, porque alunos assim não precisam de professores, podem ser ensinados no YouTube. Onde os professores são precisos é quando os alunos precisam de um professor. E quando precisam é quando têm dificuldades, quando são distraídos, quando os pais não são doutorados, quando não têm dinheiro para as coisas mais básicas. Assim, quando os sociólogos justificam os resultados da escola do estado com base nas características sociais dos alunos, estão a declarar a inutilidade da escola do estado. Se a escola do Estado só serve para os alunos ricos e educados, então os pais deles que paguem.
Onde o Externato João Alberto Faria e centenas de escolas privadas/com contrato de associação atuam, não é por terem os melhores professores. É por terem professores profissionais que tomam a responsabilidade de educar os miúdos que têm pela frente.
Quando, no início deste ano letivo, o Ministério da Educação decidiu eliminar alguns dos contratos de associação com escolas como o Externato de Arruda com base no argumento – falso, ainda por cima – de que, devido ao custo, se deveriam canalizar os recursos financeiros para as escolas do Estado, esqueceu-se de garantir a educação para os alunos que estava a prejudicar. Sim, uma escola eles tiveram. Professores, não sabemos. Em instante algum o Ministério se preocupou em atribuir um profissional de educação a essas crianças.
É claro que, como comecei a dizer, é possível que a minha primeira hipótese esteja correta. Tudo isto se deve a um qualquer fenómeno genético localizado, quem sabe provocado pela radiação dos escapes de uma nave espacial de visita aos vales do Oeste, ou se trate mesmo de uma povoação de extraterrestres que se esconde entre nós. E os sociólogos tenham razão.
PhD em Física, Co-Fundador e Partner da Closer