Aqui há umas semanas deu na televisão a notícia de que numa cidade quase exclusivamente habitada por portugueses um conjunto pequeno de pessoas terá desencadeado uma série de ataques armados; que os factos foram lamentados por um vereador português;  que várias daquelas pessoas tinham naturalmente pais estrangeiros; que tudo foi observado e descrito por uma porteira portuguesa.   A este fenómeno, tradicionalmente conhecido por Quinto Império, poderíamos chamar também o ponto de vista da porteira.

Para imaginar o ponto de vista da porteira precisamos de imaginar alguém que espreita por uma janela alta, ou um postigo, de onde se apercebe dos pés e da parte inferior das pernas de quem passa na rua; ao local onde se encontra chegam ecos difusos de palavras, em que por vezes se adivinha uma frase, mas cujos autores permanecem inespecificados.   Os dias e as noites mudam apenas ligeiramente a iluminação na caverna da porteira. O mundo que o seu ponto de vista descreve é uma confusão de membros inferiores que se movem nas direcções mais supreendentes, temperados com barulhos de natureza variável.

Com astúcia, no entanto, a porteira aprendeu a tirar conclusões sobre a realidade a partir das menores oscilações de luz, das variações de voz, e dos movimentos de pés e pernas.    Desenvolveu uma forma de atenção que consiste em registar as alterações projectadas ou consentidas pelas paredes do sítio onde vive.   O seu mundo coincide exactamente com aquilo que ouve e vê, e com aquilo que conclui a partir do que ouve e vê.

De vez em quando, em alturas em que existe necessidade de saber como tudo se passou, as pessoas da televisão vão chamar a porteira e perguntam-lhe o que realmente se passou;  a porteira desfia o seu rosário de alterações luminosas e segredos; e diz aquilo que pensa.  Quem chama a porteira trata a porteira como  a porteira trata as alterações das sombras na parede do seu covil: como a verdadeira realidade.

Tem aliás a televisão um repositório inesgotável de porteiras à sua disposição; terão todas visto e ouvido qualquer coisa: ou em casa, ou enquanto passeavam na rua, ou enquanto ouviam segredos contados por pessoas que conheciam pessoas.  Umas moram em casas de porteira, outras em universidades, outras em escritórios, outras em hospitais.   Todas terão concluído qualquer coisa a partir daquilo que, do seu ponto de vista, viram e ouviram; e à média daquilo que todas concluíram chama-se na televisão a verdade.

Torna-se claro que a televisão está para a porteira como a porteira está para os barulhos e movimentos que espreita e ouve pelo seu postigo;  dos movimentos de pés e pernas, e das trocas de palavras que promove e encoraja a televisão tira conclusões que do ponto de vista das fontes e do raciocícinio não diferem muito das conclusões das porteiras que cultiva.   Quando está desligada percebe-se que o seu écran preto é realmente uma caverna.

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