Morreram 113 pessoas vítimas de incêndios, entre Junho e Outubro. Sabemos, em relação aos deste mês, que o IPMA alertou com antecedência (72 horas) quanto ao risco máximo para 15 de Outubro, o dia fatal – e que o alerta foi ignorado e os meios necessários não foram mobilizados. Mas sabemos ainda mais em relação aos incêndios de Junho, em Pedrógão Grande. De acordo com o relatório da Comissão Técnica Independente (CTI), a Protecção Civil desvalorizou o fogo desde o início e só se mobilizou efectivamente quando surgiram as primeiras notícias de mortes. Falhou a mobilização de meios, sempre tardia. Falhou também a contabilização dos meios, dizendo a Protecção Civil estarem no terreno mais do dobro dos meios que, realmente, estavam a combater as chamas. Falhou a intervenção dos responsáveis políticos que, afluindo ao local, contribuíram para o caos e para decisões erradas, ultrapassando os comandantes operacionais. Falhou a coordenação, sendo mobilizados meios de distritos longínquos. Falhou o SIRESP, que é tecnologicamente obsoleto. Falhou a existência de meios aéreos no momento crítico do combate ao incêndio. Falhou o registo dos acontecimentos, porque um comandante da Protecção Civil ordenou um “apagão” na fita. Falhou a evacuação de aldeias, cujas populações deveriam ter sido salvas antes de ameaçadas pelo fogo.
Sabemos ainda mais. Que a então ministra da Administração Interna foi incapaz de liderar as autoridades públicas sob a sua tutela. Que o governo resistiu, ao longo de meses, em reconhecer que havia responsabilidades políticas no colapso do Estado e na protecção das vidas dos cidadãos. Que a própria ministra e a sua equipa se multiplicaram em declarações contraditórias sobre o que se passava no terreno. Que, nos incêndios da semana passada, foram irresponsáveis ao ponto de recomendar às populações para se “auto-protegerem”, acentuando a ideia de abandono. Sabemos que o primeiro-ministro protelou as indemnizações às vítimas de Pedrógão Grande enquanto pôde. Que, em intervenções robóticas, se negou a retirar consequências políticas sobre os factos de ambos os incêndios. E que, tacticamente, encaixou a divulgação do relatório da CTI entre o período pós-autárquicas e a entrega do Orçamento de Estado, na esperança de abafar o tema na agenda mediática. Por fim, sabemos que a intervenção crítica de Marcelo Rebelo de Sousa foi o que despoletou a alteração de comportamentos do governo.
Perante este retrato de sucessão de erros e fracassos, uma moção de censura ao governo era inevitável. Era o bê-á-bá da dignidade institucional. Quando todos os factos técnicos e políticos mostram que, em momentos de importância crítica, o Estado colapsou e o governo falhou, obtendo como resultado 113 mortes e o recorde de área ardida, que outra hipótese existiria que não a exigência da máxima responsabilização do governo?
Pode-se discutir a sua eficácia política (nula). Pode-se discordar do seu pressuposto (que a sucessão de erros operacionais e políticos justifica a queda deste governo). Pode-se argumentar que, do ponto de vista estratégico, foi uma má jogada – uma vez que deu, no parlamento, condições para o governo se libertar da pressão política. Pode-se contrapor que PSD-CDS têm responsabilidades na política florestal de quando foram governo – mas erros passados não atenuam erros presentes, além de que o ponto-chave do actual fracasso político esteve na Administração Interna e na incapacidade de resposta da Protecção Civil. E pode-se votar contra, porque são essas as regras do jogo parlamentar. O que não se pode é questionar a pertinência da moção: se a morte de 113 cidadãos por incapacidade das autoridades públicas na sua protecção não justifica uma moção de censura, o que justificaria?
Não vale a pena dirigir a questão ao PCP e ao BE que, respectivamente, qualificam a iniciativa de “aproveitamento político” e de “truque grotesco”. Não vale a pena porque os registos da Assembleia da República permitem-nos averiguar aquilo que, efectivamente, estes partidos consideram de gravidade política suficiente para justificar a pertinência de uma moção de censura. Nos últimos 10 anos (2008-2017), o PCP apresentou 6 moções de censura, uma das quais através do PEV – 2008, 2010, 2012 (Junho), 2012 (Outubro), 2013, 2014. O que as justificou? As ofensivas brutais “contra o valor dos salários” (2012), o “ataque brutal aos direitos dos trabalhadores” (2008), “a destruição da vida de tantos portugueses” (2012) e o “sentimento popular de rejeição da política de direita” (2014). Nesse mesmo período, o BE apresentou 3 moções de censura – 2008, 2011, 2012. O que as justificou? A “defesa das gerações sacrificadas” (2011), a recusa do “Tratado Orçamental” (2008) e o “direito aos salários e às pensões” (2012).
Como dizia, não vale a pena perguntar a PCP e BE porque os factos falam por si. Cortes salariais e nas pensões, troika, programa de assistência financeira e emigração não são aceitáveis e merecem moção de censura. O colapso do Estado em situações de emergência e a incapacidade do governo em agir e garantir a protecção da população não só não merecem censura como, quem o faz, é “aproveitador” e “grotesco”. O acesso ao poder explica as diferenças e o cinismo. Há, de facto, oportunistas nesta história. E fica bem claro quem são.