Fartei-me do Santana como primeiro-ministro, estava a deixar o país à deriva – mas não foi uma decisão ad hominem. Hoje faria o mesmo. De vez em quando é preciso dar voz ao povo – e percebi qual era o sentimento do povo” – declara Jorge Sampaio segundo se lê nos jornais e o próprio não desmentiu, no segundo volume da sua biografia política, da autoria de José Pedro Castanheira.

Estas declarações de Jorge Sampaio ensinam-nos várias coisas. A primeira é que tudo isto lembra vagamente uma conversa de café aparentemente incompatível com a imagem pública que foi criada do antigo presidente da República: a malta farta-se, pá, e prontos corre-se não com o gajo com que se joga às cartas – o Santana, estão a ver quem é? – mas sim com o primeiro-ministro. Depois temos ali o toque de latim para dar um ar institucional à coisa até que chegamos ao momento tarot-Belém: “percebi qual era o sentimento do povo”. Assim devidamente informado quiçá pela brisa que corre, pelo ar que se respira, pela água das fontes ou, como faziam os antigos romanos, pela análise das vísceras das aves, Jorge Sampaio antecipou as eleições pois afirma “De vez em quando é preciso dar voz ao povo”. Onde nos levaria esta concepção do Presidente da República como alguém que determina quando acontece esse “de vez em quando” em que se dá a voz ao povo é um mistério que não chegámos a desvendar porque felizmente o mandato de Jorge Sampaio chegou ao fim.

Enfim, tudo isto é deplorável por si mesmo e no meu caso apenas confirma o que há muito penso sobre Jorge Sampaio: o Presidente que após o 25 de Abril (o que inclui Spínola e Costa Gomes) exerceu a suas funções de forma mais medíocre. Não é uma questão ideológica. É uma questão de frontalidade, ou melhor dizendo da falta dela. É um entendimento da Presidência da República como um espaço de gestão de oportunidades e popularidades e não como um regulador de instituições.

Não por acaso Jorge Sampaio foi o Presidente menos escrutinado, menos debatido e, numa linha que o aproxima de Marcelo, apresentando-se e sendo apresentado com uma espécie de miss simpatia mas que enquanto sorri e diz coisas que valem tanto quanto o seu contrário, torna em facto consumado uma interpretação não só alargada mas também muito questionável dos seus poderes.

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Mas voltemos ainda às declarações de Jorge Sampaio. Voltemos sobretudo àquele “Hoje faria o mesmo.” É caso para perguntar: faria o mesmo com qual primeiro-ministro? Com o Santana Lopes, claro. Porque a possibilidade de o fazer com um primeiro-ministro socialista era nula, não era? Pergunto isto não por achar que Sampaio jamais seria capaz de afastar um socialista pois, o que para o caso me interessa, é que Sampaio nem sequer ousaria pensá-lo pois sabe muito bem que isso seria politicamente impossível pela prosaica razão que jamais o PS toleraria que um primeiro-ministro seu fosse tratado como Santana Lopes foi.

Na verdade Santana não seria um extraordinário primeiro-ministro, mas não só foi substituído por outro bem pior como ao aceitar-se que Santana Lopes fosse corrido daquela forma se deixou implícito que a legitimidade dos primeiros-ministros em Portugal não resulta apenas dos votos.

Esta é a lição que Sampaio nos deu em 2004: em Portugal existe quem mande – a esquerda que para o efeito obedece ao PS – e depois temos os subalternos que não vale a pena dizer que são de direita porque na verdade eles vivem num não lugar que, por prudência, definem como “não ser de esquerda”. Esse limbo ou não lugar que se define como “a não esquerda” é por assim dizer o máximo intelectual e socialmente aceitável em Portugal para quem quiser ser considerado civilizado, interessante, solidário e sobretudo viver em paz com as redes sociais, a maçonaria e o mundo mediático. A não esquerda pode existir, participar nas eleições mas, sobretudo quando está no poder, tem de admitir a sua subalternidade, penitenciar-se quotidianamente e retirar-se ou deixar-se retirar assim que lhe fizerem um sinal de que está a mais.

Veja-se como para a direita foi um alívio que Sampaio a tivesse desembaraçado de Santana Lopes. A pátria tremeu porque o dito Santana teorizou sobre os bebés e as incubadoras. Podia lá ser um homem de Estado usar uma imagem dessas?! Em boa hora Jorge Sampaio convocou eleições e passámos a ser governados por esse homem de Estado, por esse líder incontestado, por esse primeiro-ministro galvanizador chamado José Sócrates.

Naturalmente a mesma não esquerda que viveu com fatalismo o afastamento de Santana foi incapaz de fazer uma verdadeira oposição a Sócrates e até vivia no temor de que lhe ouvissem uma palavra menos própria sobre os comportamentos impróprios do primeiro-ministro. A isto junta-se que passavam a vida a lastimarem-se por não terem um líder tão dotado quanto José Sócrates.

Não perceberemos nunca como foi possível José Sócrates nem entenderemos como pode António Costa estar a levar o país para uma nova crise com um espantoso riso na cara sem atendermos a essa dicotomia entre governantes legítimos e subalternos que nos rege desde 2004. E sobretudo sem termos em conta que ser subalterno não só não se estranha como se entranha.