O termo «populismo» tornou-se o nome que se dá mecanicamente a todas as manifestações de natureza política que saem do enquadramento partidário vigente até há pouco tempo. «Populismo» é tudo o que é diferente e que a comunicação social não reconhece dos manuais correntes de ciência política. Dito isto, não é muito inteligente «gritar ao lobo», pois quando este aparecer, arriscamo-nos a não o reconhecer e a sermos comidos por ele!

Na realidade, o «populismo» é um sentimento político que provém de uma velha estirpe iniciada na Rússia da segunda metade do século XIX, onde constituiu um vasto movimento cultural de oposição radical à autocracia czarista – incluindo actos de terrorismo – feito em nome do «povo» (narod; daí a designação de populistas: narodniki; ver o clássico de Franco Venturi de 1952). Sob a sua versão final de «socialismo revolucionário» (os famosos «SR de esquerda» de 1917), o «populismo russo» ainda tentou aliar-se aos bolcheviques para abrir o caminho à entrega da «terra a quem a trabalha» logo a seguir à revolução de Outubro, mas acabou por ser rapidamente esmagado pela ditadura soviética, a qual colectivizaria toda a agricultura nos anos 20!

No extremo geográfico oposto, também em finais do século XIX existiu nos Estados Unidos um «partido populista» que, liberalmente, acabou por originar os primeiros agrupamentos trabalhistas até que o «New Deal» e a 2.ª guerra mundial absorveram a maior parte das tensões esquerdistas. Bem mais importante foi um terceiro movimento «populista» que emergiu na América Latina nos anos ’30 e ’40, nomeadamente no Brasil com Getúlio Vargas e na Argentina com o general Perón. Na região, o «populismo» tem-se mantido até hoje sob múltiplos avatares, como os «militares progressistas», entregando-se ao mando de figuras como Chávez e Maduro. Cuba provinha igualmente deste tronco até se tornar «comunista», sempre em nome das massas populares…

Por definição, todas estas manifestações «populistas» têm em mira afastar do poder as oligarquias tradicionais e dirigir-se ao «povo». Porém, na falta de alternativas democráticas à oligarquia, resvalam rapidamente para formas ditatoriais que não deixam de atribuir benefícios a determinadas classes populares, mas trocam tais benefícios pelo confisco do poder até a economia estoirar. Simultaneamente, combinam, tal como os movimentos a que hoje chamamos «populistas», medidas de direita e de esquerda, pretendendo manter-se equidistantes de ambas as ideologias.

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A actual vaga «populista», como foi designada a partir do momento em que a Frente Nacional começou a ter êxito em França, possui uns vagos restos da fé dos narodniki nos valores populares nacionais como forma de enfrentar as autocracias oligárquicas, mas perdeu as referências democráticas dominantes desde o segundo pós-guerra. O mesmo se pode dizer de um movimento como «Podemos» em Espanha, vinculado agora à grande recessão de 2007 e a uma pretensa luta contra a austeridade imposta por um vago «imperialismo», como se houvesse algures um centro onde a dominação capitalista fosse armada contra os «povos» da União Europeia… O nacionalismo e o proteccionismo que caracterizam todo o arco histórico do «populismo» alimentam-se hoje do receio perante o cosmopolitismo, do qual a UE constitui o grande fantasma, e a globalização económico-financeira.

É este novelo infindo de contradições entre os alegados sentimentos populares e o construtivismo cosmopolita das chamadas elites que se tem vindo a desenrolar parente nós, dividindo os países da nossa área geocultural em duas e, depois, em mais duas «crenças» políticas que combinam de modo oportunista as clivagens soberanismo vs cosmopolitismo e proteccionismo vs liberalismo. Os agrupamentos mais radicais – «populistas» – que combinam o soberanismo e o proteccionismo apresentam-se umas vezes como sendo de «esquerda» e outras de «direita», embora aquilo que caracteriza o «verdadeiro populismo» seja negar uma e outra ideologia: o melhor exemplo é porventura o «Podemos» espanhol, não à toa oriundo da América Latina, onde o «populismo» é concebido como unificador e não divisivo, em suma, autoritário e não pluralista!

Sem surpresa, foi nesta armadilha que caíu o primeiro-ministro italiano demissionário, Matteo Renzi, ao pretender impor um nacionalismo popular por ele encabeçado. Tive aliás oportunidade de mostrar como Renzi, há já ano e meio, não fazia mais do que usar a ideologia basista das «eleições primárias», como fazia então António Costa no PS, a fim de transformar os partidos tradicionais em arregimentações ditas populares atrás de líderes pretensamente carismáticos que iriam ultrapassar sem dor os apertos da crise.

No caso de Renzi, tratou-se – nada mais, nada menos – do que transformar-se no novo líder do último grupo descendente do Partido Comunista Italiano, propondo-se fazer de toda a estrutura política italiana um instrumento à medida do seu poder pessoal. A derrota de Renzi mostrou o grave perigo de abrir caminho a mais um demagogo, desses que nos salvaria se o acompanhássemos no seu iluminado caminho, ora a favor ora contra a Europa. Não é impossível que Renzi tenha levado o eleitorado italiano a tirar as consequências do risco que correu e continua a correr, do qual só a UE o pode proteger.