Ao falarmos das relações entre a União Europeia e a Rússia ou entre a Rússia e os seus vizinhos europeus, é preciso compreender a razão que os leva a ter medo dela e não os acusar de anti-russismo ou de coisas ainda mais graves.

Frequentemente, os dirigentes de Moscovo não distinguem qual a diferença entre “ter respeito” e “ter medo”. E isto é difundido sistematicamente pela propaganda oficial tanto para dentro, como para fora do país.

Isto bem a propósito de um artigo de opinião do embaixador Francisco Seixas da Costa: “Com a NATO não se brinca!”, publicado no Jornal de Notícias.

É difícil não concordar com ele quando aponta algumas das missões da NATO nos nossos dias: “A Rússia, não sendo um inimigo, não é um poder qualificável de plenamente democrático, por não oferecer garantias de se subordinar a um quadro de respeito estrito pelo Direito Internacional, pelo que necessita de conhecer, com clareza, as “linhas vermelhas” que não deve ultrapassar, na observância do equilíbrio de poderes posterior à Guerra Fria. E só a NATO as pode definir”.

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Porém, é curioso assinalar como o embaixador continua o seu raciocínio: “O que escrevi levar-me-ia a louvar a NATO e o seu trabalho, não fora o facto de a organização ter sido visivelmente “raptada”, nos últimos anos, por uma agenda de pendor radical, que soma algumas tentações de proselitismo político-militar dos EUA com a paranoia de alguns países que o alargamento da NATO colocou junto às fronteiras da Rússia — a tal “nova Europa” que Donald Rumsfelt se gabava de pôr em choque com o resto do continente”.

Aqui penso que seria útil analisar o que “provoca a paranoia de alguns países que o alargamento da NATO colocou junto às fronteiras da Rússia”. É fácil para académicos ou políticos falar disso quando se está a milhares de quilómetros dos países que vizinham com a Rússia, mas aqui colocam-se várias questões: Não foram os povos desses países que decidiram de livre vontade aderir à NATO? E o que os levou a tomar essa decisão?

As respostas a essas perguntas têm profundas raízes históricas: o medo do “vizinho gigante”, e a actual política externa do Presidente russo Vladimir Putin apenas lhes dá razão uma vez mais. Putin já ultrapassou duas importantes “ligas vermelhas”: ocupou parte do território da Geórgia em 2008, invadiu e ocupou a Crimeia e parte do Leste da Ucrânia. E habitantes de países como a Estónia, Lituânia, Letónia, Polónia, etc. perguntam: se Putin ocupou esses territórios, o que poderá impedi-lo de ir mais longe? Porque será que o orçamento militar da Rússia tem crescido em flecha nos últimos dez-quinze anos?

É esse medo que os levou a integrar a NATO, mas grande parte dos cidadãos desses países coloca ainda mais uma pergunta: se, antes, a Europa nos atraiçoou várias vezes para “não abalar os equilíbrios geopolíticos”, porque é que não o fará agora em nome da recuperação económica ou de quaisquer outras “razões” embrulhadas em palavras bonitas?

Neste contexto, é difícil compreender como um embaixador português tão ilustre escreva o seguinte: “O que se passou na Ucrânia, a reboque de uma União Europeia que teve a insensatez de se deixar arrastar para políticas claramente provocatórias, que de modo irresponsável se permitiram abalar equilíbrios geopolíticos que haviam provado ser marcos da segurança coletiva, mostrou que “brincar” com a História pode ter um elevado preço”.

Pergunta-se: mas será que foi a Ucrânia que invadiu a Rússia? Os ucranianos não têm direito a decidir os destinos do seu país? Posso concordar com a crítica feita pelo embaixador à União Europeia, mas isso não pode ser motivo para violações grosseiras e ostensivas do Direito Internacional por parte dos dirigentes russos.

Quanto ao “não abalar os equilíbrios estratégicos”, esta frase fez-me recuar à era do Acordo de Munique e do Pacto Molotov-Ribbentrop (1938), documentos que permitiram à Alemanha nazi dar início à mais sangrenta guerra da História. Em Munique, foram sacrificados os interesses dos checoslovacos; o pacto germano-soviético determinou os destinos da Polónia e dos países do Báltico.

Por isso, agora, quando tanto se fala sobre a necessidade do levantamento das sanções contra a Rússia em resposta à ocupação militar da Crimeia e do Sudeste da Ucrânia, é preciso ter em conta que elas foram tomadas por essas razões e não começar a ir ao encontro do Kremlin que propõe que se esqueça a Crimeia e que “apenas resta” normalizar o resto da questão.

Se a União Europeia e NATO aceitarem esta fórmula, isso, na Rússia, será apresentado como um grande êxito de Vladimir Putin no campo externo e restará apenas saber qual será a próxima vítima. Além disso, será também o reconhecimento de interesses especiais da Moscovo no espaço pós-soviético, queiram os países vizinhos desse espaço ou não.

A Rússia tem muitos motivos para ser respeitada pelos outros povos, mas os dirigentes de Moscovo não distinguem qual a diferença entre “ter respeito” e “ter medo”, ou melhor, consideram que só com o medo poderão impor respeito. Por isso, não me apresso a condenar Donald Rumsfelt ou a “paranoia” pelo alargamento da NATO a Leste.

Estou de acordo com o embaixador Seixas Santos quando escreve que “com a paz também não se brinca”, mas a História já mostrou que, para isso, é preciso estar pronto para defender eficazmente essa paz.

E garanto-lhe que não faço parte da “escola que faz do ultra-atlanticismo o seu “fond de commerce””, mas daquela que viveu e vive por dentro uma realidade também pouco estudada nos nossos meios académicos: a memória histórica dos povos e o seu reflexo na política externa.