“A guerra é a paz”

Em 1949, o escritor britânico George Orwell publicava a sua mais conhecida obra, a anti-utopia “1984”, livro censurado e proibido em qualquer país onde foram ou estão instalados regimes autoritários.

Na União Soviética, os dirigentes comunistas mantiveram essa obra no índice dos livros proibidos até à perestroika de Mikhail Gorbatchov, pois consideravam, e com toda a razão, que “1984” não passava de uma das mais perigosas obras literárias anti-soviéticas.

Hoje, Vladimir Putin não chegou ainda ao ponto de proibir a venda dessa obra nas livrarias, mas a sua distribuição gratuita ou citações podem causar sérios problemas aos que ousem fazer isso em tempo de “operação especial” das tropas russas. A própria proibição da palavra “guerra” e a sua substituição pelo termo “operação especial” fazem lembrar passagens de “1984” como “a guerra é a paz”.

No dia 11 de Abril, na cidade de Ekaterinburgo, a polícia deteve um cidadão russo que exibia uma folha de papel como essa máxima do romance distópico de Orwell e conduziu-o para uma esquadra, onde foi acusado de “desacreditar as forças armadas russas”, sendo o castigo o pagamento de uma multa de 50 mil rublos (cerca de 60 euros).

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Os serviços de segurança andam à caça dos estudantes que ousam deixar nas estações de metropolitano de Moscovo exemplares de obras como “1984”, “O Adeus às Armas” de Ernest Hemingway e “A Oeste Nada de Novo” de Eric Maria Remarque”.

Mas parece que, como acontece frequentemente na Rússia, as perseguições apenas despertam a curiosidade das pessoas. Segundo as editoras russas, o romance “1984” regressou ao top dos livros mais vendidos no país.

Além disso, os leitores procuram também livros de psicologia como o de Viktor Frankl “Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração”.

Talvez a explicação para este fenómeno esteja nas palavras do Presidente francês, Emmanuel Macron, que, numa das suas últimas entrevistas diagnosticou paranoia no ditador russo. Quando lhe perguntaram quais os motivos de Putin para invadir a Ucrânia, ele respondeu que “o ressentimento [em relação à política do Ocidente] se transformou em paranoia”.

“O isolamento de Putin, desde as sanções de 2014, só tornou tudo pior. Também não se deve subestimar o papel da covid-19 (…) em muitos líderes que já estavam à beira da solidão. Ele fechou-se em Sochi durante meses, entregue aos seus pensamentos”, acrescentou Macron.

Donbass e não só

 

A paranoia de Putin deverá ter agravado fortemente depois do fracasso da primeira etapa da invasão da Ucrânia. A prisão de alguns dirigentes do Serviço Federal de Segurança da Rússia encarregados de acompanhar o país vizinho e de Vladislav Surkov, ex-adjunto de Putin para o Donbass, é um sinal de que começou a caça aos “bodes expiatórios”. E a purga irá certamente continuar.

Paralelamente, a ofensiva militar russa irá intensificar-se no Leste e Sudeste da Ucrânia, pois o ditador precisa de uma vitória que já tarda muito. Ele não olhará a meios para vergar os “neonazis” ucranianos nessas regiões.

Mas terá de continuar para a ocupação total da Ucrânia não só para acabar com um país que, segundo ele, não deve existir, mas também para fazer a vontade aos extremistas russos. Não se vê túnel que conduza à paz e muito menos luz ao fundo dele.

P.S. Causou alguma surpresa em certos sectores europeus a decisão da direcção da Ucrânia de não receber o Presidente alemão, Frank-Walter Steinmeier. Rui Rio considerou isso um “tiro no pé”, mas, na realidade, trata-se de uma atitude clara e firme do Presidente Zelensky e da sua equipa. Afinal, não restam dúvidas que alguns políticos europeus, incluindo alemães, contribuíram, consciente ou inconscientemente, para a tragédia que caiu sobre os ucranianos.