1. “Este ano o presépio é o da Índia, é aquele do Peru ou é o de pano?” perguntam os netos, com aquela curiosidade emaravilhada e sempre reeditada por alturas de Dezembro.

“E se fosse aquele das figuras de papel que deram à avó o ano passado?” A verdade é que melhor que ninguém eles sabem que poderiam alargar-se naquela evocação porque do pano ao plástico, passando pelo mais solene presépio “doirado” até às encantadoras figurinhas de cores garridas e formas ingénuas dos presépios populares ou ainda a alguns presépios-miniatura, há por aqui por onde compor com devoção e magia o mais maravilhoso dos presépios. O peruano comprei-o em Lima e é em terracota, o da Índia arrematei-o em Goa e é de madeira, o de pano estampado ofereceram-me; os de papel e de plástico foram-me dados um dia por um amigo que dantes trabalhava na Saúde (acho que já se reformou), eram feitos por doentes mentais e são certamente os mais impressivos. O solene é “antigo”, os “populares” vou-os adquirindo nas feiras do Portugal profundo e os outros é por aí fora, onde calha que os arranje.

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Se tivesse vida e vagar colecionaria mesmo presépios. Um dia, há muitos anos, um dos meus filhos disparou o alarme de que” havia seis Reis Magos”. Foi numa ocasião em que ousei tal fantasia (três dos Magos vinham por um lado, os outros três pelo outro…) por me parecer impossível eleger apenas três Reis de entre tão fértil escolha e a verdade é que o número insólito de cavaleiros reais perto da manjedoura em nada deslustrava o conjunto final nem ainda menos comprometia o que se pretendia que fosse uma digníssima representação da vinda do Messias. Por pouco tempo: a família vetou por unanimidade aquele nunca visto sexteto de reis e cavalos. Com tantos presépios e tamanho gosto por encená-los e dar-lhes sopro e vida, por vezes permitia-me poeticamente algumas divagações, na hora de meter mãos à obra. Mas essas tímidas tentativas de misturas ou “idealizações”, jamais convenceram ou sequer comoveram ninguém cá em casa. Um presépio, era um presépio desde há dois mil anos.

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Quando as minhas irmãs e eu éramos pequenas, no Natal o presépio era tudo. Muito mais que brilhos, bolas, fios e prendas, a Sagrada Família é que contava. Só com os netos, nossos filhos, é que os meus pais se converteram à árvore de Natal. Sucede porém que o presépio, quando éramos crianças, era uma peça que morava na penumbra da capela, e estava “atribuída” aos discípulos de Machado de Castro ou aparentado a essa escola, o que de imediato nos sinalizava que “se” devia fazer cerimónia com aquela espécie de lindíssima escultura, idealizada em altura e envolta por uma campânula de vidro.

Todos os anos em Dezembro o presépio era objecto de uma operação digna da preparação dos grandes acontecimentos. Com mil cuidados e dia certo (“hoje vai-se mudar o presépio”, anunciava a minha mãe, como se nós as três fôssemos de algum modo chamadas a “estar de serviço” para a delicada ‘transferência’) o presépio iniciava então uma viajam para a sala onde o víamos ser cautelosamente colocado em cima de uma mesa já previamente coberta por um pano adamascado. E por lá ficava durante toda a quadra, vigiado por dois esguios castiçais de velas acesas. Também sabíamos e também de antemão, que tios e tias, primos e primas se extasiavam sempre, ano após ano, Natal após Natal, como se fosse a primeira vez, diante da minúcia e da demora usadas na certamente laboriosa confeção daquela joia.

Era tão lindo o presépio quanto distante. E embora para o Natal se retirasse a redoma de vidro que habitualmente o protegia, as minhas irmãs e eu, quando nos fixávamos a olhar para ele, tínhamos porventura mais cuidado do que devoção, mais respeito que magia e às vezes penso se não foi justamente “aí” nesta tão imorredoura recordação de infância que nasceu esta minha queda amorosa para presépios, como dizer? manuseáveis Próximos de mim e já desamarrados do constrangimento de não poder lidar com eles.

Hoje não recebo – e muito raramente encontro – um cartão de boas festas que aluda, mesmo que ao de leve, à verdadeira simbologia do Natal. Caiu em desuso. Ou é proibido, como uma punição que merecêssemos. Como ocorreu com a matriz cristã da Europa: começou por ser negada para agora ter sido banida. Passando nesse caso – por exemplo – a ser um mistério o conteúdo profundamente religioso que até uma certa época “ocupa” grande parte da pintura que enche as salas dos museus europeus. De de que “matriz” virá então aquela arte?

2. O facto é que me apercebo que se trata de um momento muito tocante e porventura ainda mais interpelante que tocante, essa espécie de diálogo íntimo que de imediato se inicia com o sagrado quando começo a erguer um presépio. Com o mistério da Natividade, o que ele nos exprime e o que ele nos propõe. Com o tão desafiadoramente “novo” caminho que parte de dentro do presépio que acabei de fazer, e sejam quantos forem os Reis Magos nele presentes.

3. E que me resta, no anoitecer desta terça feira lúgubre em que acabo – agora mesmo – de saber de Berlim, senão olhar para o nosso presépio? E para ele transferir o medo que sinto, o chão que deixei de ter, as certezas que se desfizeram em pó, as coordenadas que saíram de vez dos radares que sempre usei?

4 -Santo Natal!