1. São, hoje à tarde (quinta-feira), discutidos no plenário da Assembleia da República, vários projectos de lei sobre a questão dos feriados. Também decidi apresentar um projecto, a título individual, que, graças ao consenso favorável dos grupos parlamentares, também poderá ser discutido hoje e votado amanhã. A imprensa, de uma forma geral, nomeadamente o Observador, já deu nota dos seus pontos mais salientes.
Porém, soube que, no debate em plenário, só terei direito a usar da palavra por 1 minuto para o discutir e defender. A apresentação dos outros disporá de 4 minutos cada um. As regras são assim – são para cumprir.
Isso alterou, porém, a ideia quanto ao discurso que tencionava fazer, focado na questão do 1º de Dezembro, que é o feriado nacional que mais me tem ocupado. Não é essa a única questão do meu projecto; mas tinha pensado actualizar, perante o plenário da Assembleia, um texto que escrevi há quase três anos e que me ajudou a aprender ao correr da pena, à medida que o escrevia. Teria gostado de o partilhar directamente, de viva voz, com os meus colegas parlamentares.
Não o podendo fazer, por falta de tempo de palavra, antecipo-o aqui, junto com os leitores do Observador, admitindo que ao menos alguns deputados o possam ler. E sorrir. E ponderar.
2. Na reavaliação desta questão dos feriados que tanta tinta fez correr, centro-me na reposição do 1º de Dezembro, o mais alto dos feriados nacionais, porque celebra o valor mais alto e essencial de Portugal: a independência e a liberdade nacionais.
Quando tudo isto começou, há três anos, cansei-me de ouvir pessoas – creio que minoritárias, mas influentes e poderosas – a sustentar que “o 1º de Dezembro não tem importância de maior”, que “não tem grande valor”, que “não representa nada de fundamental”, que “podemos bem pensar sem ele”. E comecei a escrever um texto ligeiro, quase por brincadeira, apenas a imaginar o que seríamos e o que seríamos, se não fosse o 1º de Dezembro. É isso que escrevi que vos quero dizer, neste tempo em que decidimos se vamos, ou não vamos, chumbar uma vez mais, pela terceira ou quarta vez consecutiva, o nosso 1º de Dezembro.
3. Este texto não seria escrito se não tivesse havido 1º de Dezembro. Ou seria escrito em Castelhano. Não seria dito aqui, porque não estaríamos aqui. Porventura este “aqui” nem existiria, mas qualquer outra instituição.
Não haveria Língua Portuguesa como a conhecemos hoje – teríamos sido sujeitos a longa aculturação espanhola, somando mais 370 anos de usurpação aos sessenta de domínio dos Filipes.
Não haveria a querela do Acordo Ortográfico – porque não haveria o Português, nem o problema da regulação do uso universal da nossa língua. Estaríamos hoje com os galegos, esbracejando pela cidadania linguística.
Não haveria Rui Reininho e a sua “Pronúncia do Norte”, nem Pedro Abrunhosa e o seu “Momento” ou Jorge Palma e “Encosta-te a Mim”, o “Ó gente da minha terra” de Mariza, o “Fado Tropical” de Chico Buarque.
Fernando Pessoa não seria o que é, nem a “Mensagem”. Camões e “Os Lusíadas” seriam talvez desconhecidos, literatura esquecida ou clandestina.
Veríamos filmes dobrados – em Castelhano.
O Fado não seria Património Imaterial da Humanidade. Não existiria sequer o fado, antes outra coisa qualquer de sonoridade espanhola.
Já não teríamos declarado o sobreiro árvore nacional. Não seríamos o maior produtor mundial de cortiça – seria Espanha.
O nosso porco preto alentejano seria porco ibérico para toda a vida, sem apelo nem agravo.
Teríamos centrais nucleares na bacia do Tejo – e talvez também na do Douro –, não só do lado de lá, mas do lado de cá.
Não haveria lado de cá e lado de lá.
A política espanhola de transvases, afectando os nossos rios, estaria aí em pleno.
Não haveria D. João IV, nem D. João V e o seu Convento de Mafra, nem D. João VI e a originalidade fundadora da corte no Brasil.
Não haveria o próprio Brasil. Em lugar dessa criação do génio e do acaso português, teriam surgido outras coisas, fruto de colonizações retalhadas de holandeses, franceses, espanhóis e ex-portugueses falando espanhol. Não haveria o samba e a bossa nova.
Não haveria Angola, nem Moçambique. O espaço de Moçambique estaria repartido por países anglófonos; e no de Angola seria outro retalho qualquer de colonizações holandesa, alemã, francófona, talvez espanhola. São Tomé e Príncipe estaria na Guiné Equatorial, como Fernando Pó e Ano Bom. A Guiné-Bissau moraria na francofonia; Cabo Verde provavelmente também. Não haveria a morna, nem a coladeira, talvez o zouk de Guadalupe e Martinica. Timor seria holandês e, portanto, indonésio. Macau teria logo acabado, pouco depois de ser.
Não teria havido a guerra de África – não teria havido Ultramar ou colónias. Não existiria a CPLP. Nem haveria sequer o Fórum Ibero-Americano, antes qualquer coisa hispano-americana.
Não haveria o navio-escola “Sagres”. O nosso mar português não seria.
Não teríamos o Eusébio. Não teríamos festejado o louco terceiro lugar do Mundial de Inglaterra 1966, mas alguns teriam celebrado a Espanha campeã do Mundo na África do Sul 2010. O Benfica e o Porto provavelmente nunca teriam sido campeões europeus. A Académica nunca teria ganho a Taça de Portugal – não haveria Taça de Portugal. Com sorte, Benfica, Porto, Sporting, outro, poderiam ter ganho a Copa Generalíssimo ou a Taça do Rei.
Não haveria Cardeal Patriarca de Lisboa, título do século XVIII. Não haveria um só cardeal português no Consistório de Roma. Não existiria a Conferência Episcopal – os nossos bispos estariam na conferência espanhola.
Teria havido o terramoto de 1755, mas não o Marquês de Pombal, nem a baixa pombalina. As invasões francesas teriam sido uma passeata com cicerone espanhol. Não haveria a questão de Olivença – seríamos todos nós Olivença.
Teríamos tido na mesma as lutas liberais, mas não entre D. Pedro e D. Miguel, antes envolvidos nas longas guerras do carlismo. Não teríamos tido nem Afonso Costa, nem Salazar, mas dois breves episódios republicanos, um fugaz no século XIX, outro nos anos ’30 do século XX, seguido da guerra. Teríamos tido a Guerra Civil, seguida do Generalíssimo e da restauração monárquica com rei espanhol. Teríamos sofrido o terrorismo da ETA.
Não haveria Cavaco Silva, presidente; nem, antes, Jorge Sampaio, Mário Soares, ou Ramalho Eanes. Seria D. Juan Carlos; e, hoje, Filipe VI de Espanha – talvez Filipe V de Portugal, se permanecesse a formalidade dos reinos separados e da monarquia dual, o que é duvidoso.
Não teríamos Passos Coelho, nem Paulo Portas, antes Mariano Rajoy e Garcia-Margallo ou Soraya Sáenz de Santamaría.
Não teríamos Ministério dos Negócios Estrangeiros – seríamos somente um negócio de estrangeiros.
Não teríamos Assembleia da República, apenas as Cortes Generales.
Aqui chegados, eu compreendo perfeitamente que as Cortes de Madrid chumbassem o nosso feriado do 1º de Dezembro, primeiro o Congresso dos Deputados, logo a seguir o Senado. Mas a Assembleia da República fazer isso? Não pode ser.