Há dias li um texto de Anna Almendrala no Huffington Post sobre amizades. Dizia lá que, além das reconhecidas vantagens de ter amigos (companhia, diversão, cumplicidade, fuga da solidão, apoio em tempos problemáticos e mais trezentas e quarenta e sete vantagens), se comprova que ter amigos faz bem à saúde. A certa altura o artigo cita mesmo um estudo que equipara o risco de mortalidade de quem não tem uma rede social forte ao de quem fuma quinze cigarros por dia ou bebe diariamente seis bebidas alcoólicas.
Enquanto lia o texto pensei enviá-lo às minhas amigas mais chegadas, quiçá escrever um post sobre amizade, referindo como as minhas amizades de adolescência ainda são tão centrais na minha vida (tanto que vinte anos depois ainda contacto com frequência com a maioria, e jantamos e fofocamos e até engravidamos ao mesmo tempo), como incentivo os meus filhos a serem amigos dos filhos dos meus amigos, como nos últimos anos a blogosfera e o facebook permitiram que me tornasse amiga de pessoas que nunca conheceria (e que ninguém vilipendie estas novas redes ao pé de mim). Poderia até elaborar sobre as amizades femininas – as amizades entre mulheres são das relações humanas mais curiosas (e recompensadoras e cúmplices) que se podem estabelecer, e são tantas vezes desconsideradas por homens (os que não concebem não ser o centro de todas as relações femininas) e por mulheres (as sem arte para constituir estas deliciosas amizades). Com algum tempero de questões de género, desde logo como provocação amigável a quem se amofina com estes temperos.
Pensava eu o exposto acima, mas continuei a ler o texto e tive os inícios de um pequeno ataque de nervos. É que às tantas se passa de elencar os benefícios para as pessoas das suas amizades para passar a ponderar os benefícios para a saúde pública da existência das amizades. Chega mesmo a lamentar-se a necessidade de maior pesquisa neste campo antes de se fazerem ‘campanhas de saúde pública sobre relações’.
Leram bem: há quem avente a possibilidade de ser tarefa do Estado dar conselhos aos cidadãos sobre as suas relações. (O que me leva já aqui a apelar que instituição ou pessoa alguma financie mais estudos sobre amizades; sabe-se lá o que políticos com a mania de se intrometerem na vida dos cidadãos fariam com eles.) Felizmente o texto não elencava de que forma o Estado poderia intervir para melhorar as relações humanas, que assim o meu ataque de nervos foi apenas incipiente. Em todo o caso, a minha imaginação (fértil) e os meus ímpetos bélicos (que ressurgem quando há perigo de burocratas teimarem em dizer-me o que fazer com a minha vida) congeminaram logo cenários de isenção de impostos para quem comprove (através de registo em repartição pública) ter um número razoável de amigos (estimativa obtida através de comissão parlamentar). Ou, sendo mais realista, agravamento de impostos e de taxas moderadoras para os pobres coitados que não consigam apresentar oficialmente amigos. Ou a obrigatoriedade de descrever a vida social ao médico de família. Ou campanhas pagas pelos contribuintes retratando os tímidos e os solitários como cidadãos incumpridores.
Porque me lembrei disto? Porque novamente esta semana foi noticiado que o governo estuda aplicar um imposto aos alimentos que contenham açúcar, sal ou gordura. Quer, diz o governo, diminuir a dívida do SNS – existente, presume-se, sobretudo pelos gastos em tratamentos a esses meliantes gulosos, hipertensos e cheios de colesterol que nunca se privam de duchaises nem de torresmos.
Claro que qualquer pessoa argumentará que já pagamos impostos indecorosos de tão altos, pelo que se não chega para pagar o SNS tal se deverá a ineficiência estatal, não à necessidade de recolher mais impostos. E que inventar um novo imposto parece ser a solução governativa da atual maioria para tudo. Mas os anjinhos que nos governam – pessoas prenhes de amor pelo próximo, guiadas apenas pela vontade de servir a população e contribuir para o bem comum, nunca (jamais!) movidas pela ambição de incrementar o poder pessoal (e o poder mede-se pela porção do orçamento que se tem para gerir) – afiançarão estarem somente preocupados com a saúde dos cidadãos e a prevenção dos maus hábitos que pessoas irresponsáveis se recusam abandonar.
Contudo o secretário de estado da Saúde Leal da Costa já explicou que os portugueses devem adotar bons hábitos de saúde para promover o equilíbrio das contas do SNS (DN, 29/12/2012). Eu detalho ainda mais: para o governo, a saúde de cada um não deve ser procurada por questões de bem-estar individual, evitar doenças, chegar à idade de ver netos e bisnetos, qualidade de vida. Não. Qualquer destes objetivos egocêntricos empalidece perante esse grande desígnio de cada cidadão (ninguém imagina bem maior) que é sustentar o SNS.
É, portanto, assim que somos medidos por governantes e eventualmente uma colunista do Huffington Post. As dificuldades que um casal tem para conciliar trabalho e família não moem absolutamente nada o governo; só passam a interessar quando isso diminui os nascimentos e periga a sustentabilidade da segurança social e, mais importante, decresce o stock de futuros contribuintes. As decisões alimentares devem ser feitas para reduzir o défice do SNS e não tendo em conta a saúde individual. E, se deixarmos, até o número e a qualidade das nossas relações humanas teremos de justificar perante os agentes estatais.
George Orwell e Aldous Huxley ficariam encantados com o engenho com que os governantes atuais nos aprisionam dando-nos a ilusão de sermos livres.