Não é segredo para ninguém que o regime angolano vive emprenhado em corrupção, que persegue e reprime os seus opositores, e que asfixia a economia com um apertado controlo estatal. Nem que, nos últimos meses, essa repressão se intensificou, com uma série de prisões políticas. Por isso, um grupo de intelectuais e académicos redigiu uma carta aberta (publicada em vários jornais europeus) pedindo a investidores e governantes que, nas suas relações com Angola, vejam para além dos interesses económicos e coloquem os princípios à frente. Percebo e simpatizo com a iniciativa, embora discorde da ideia de que os estados democráticos não devem negociar com estados autocráticos ou tiranias – mas isso é tema para um outro artigo. O que não percebo e não me causa simpatia é que estas cartas abertas e indignações bem-intencionadas só surjam em relação a certas tiranias, havendo outras que, sendo igualmente inimigas das liberdades mais básicas, recolhem compreensão e aplauso entre as elites.

Veja-se o caso da Rússia. O regime de Putin está inundado em corrupção, oprime todo o tipo de manifestação de oposição política, prende críticos do regime (quando não têm o azar de, por coincidência, encontrarem a morte numa viela), e persegue os homossexuais. No entanto, quando Tsipras foi a Moscovo reforçar laços políticos com Putin (uma espécie de vassalagem) e chantagear a União Europeia (que, apesar dos seus defeitos, é um dos maiores garantes de paz e liberdade no mundo), não houve cartas abertas de intelectuais indignados. Mas houve aplausos.

Ou, então, veja-se o caso da Venezuela. Tal como Chávez, Maduro alimenta-se da corrupção, intimida populações nos momentos de escrutínio eleitoral (Chávez chegou a ameaçar com tanques nas ruas), impõe controlo social por via da violência, viola direitos humanos e condena a sua população à escassez de bens de primeira necessidade. E enquanto tudo isso acontece, o regime venezuelano é ainda um financiador, em Espanha, do Podemos de Pablo Iglesias e, na Grécia, do Syriza de Tsipras, recebendo louvas pela sua luta contra o capitalismo. Também aqui, não há cartas abertas de intelectuais indignados. Só aplausos.

Poderia prosseguir na enumeração de exemplos, que infelizmente não faltam, mas julgo que o ponto ficou perceptível. Note-se que não quero diminuir a iniciativa dos académicos que pretendem a libertação dos presos políticos em Angola, nem a crítica do meu artigo lhes é dirigida. Aliás, junto-me a eles no apelo a que a comunidade internacional condene todo o tipo de repressão política. Mas isso não é sinónimo de dar força a ilusões. “Eticamente condenável” e “politicamente perigoso” não é somente fechar os olhos à tirania de um país, mas sobretudo a opção habitual de só ver tiranias onde convém, como fazem muitos dos jornais e intelectuais que, pela Europa, publicaram ou partilharam esta carta aberta contra Angola. De facto, se as relações internacionais fossem geridas em função deste tipo de indignações colectivas, teríamos de incluir uma nova regra nos manuais da disciplina: as relações externas com tiranias só são legítimas se estas forem de esquerda.

É caricato e tem o seu quê de trágico. A partir do momento em que a nossa indignação para com inimigos da liberdade é selectiva e está sujeita a critérios de conveniência política e ideológica, já não são os direitos humanos que nos movem. É mau quando os princípios ficam na dependência de interesses económicos? Sem dúvida. Mas é tão mau como quando esses mesmos princípios ficam sujeitos ao lirismo revolucionário. Ver o primeiro é importante. Não ver o segundo será sempre uma hipocrisia.

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