1. “Dizes sempre mal dele, que coisa”. Dizer mal “do Marcelo” é hoje algo de quase brutalmente dissonante, entre o inadmissível e o absurdo. Não é suposto. Não se faz. Na rendição apatetada do país ao Chefe do Estado, “demissões” não são pura e simplesmente concebíveis. O perímetro feliz dos afectos e do afã non-stop, expulsa-as automaticamente.
Ouço constatações lamurientas “como é que eu não me canso”, envoltas em condescendência falsamente tolerante: “não tens medo de ser injusta?”. Coisas assim, sem importância.
Mas espanto-me sempre: o ponto não é escrever o que escrevo, ou dizer publicamente o que digo, mas a razão porque o faço. Não há embirração pessoal ou capricho – dispensáveis, de resto, nos textos políticos: se há pessoa com quem tenha passado bons bocados, vivido interessantes aventuras jornalísticas, rido até cair para o lado – e sabe Deus o formidável poder que tem o riso comum – foi com Marcelo Rebelo de Sousa e foram muitos anos disso. Se amanhã fosse almoçar com ele a uma esplanada faria um livro a seguir, além do bónus do divertimento, coisa raríssima entre nós. Mas a pátria não é isso.
A verdade é que o observei, vi-o agir, trabalhei com ele e para ele, conheço-lhe a excepcionalidade da inteligência, tirei-lhe muitas fotografias com palavras, confessei-o, alcancei a dimensão exacta da sua ambição, retive, para a vida, a certeza da sua solidão. Sei quem ele é. E não gosto nada disso na política (mesmo se feito com brilho e às vezes génio: só um imbecil não lhe reconhece o génio na habilidade com que manuseia a política, os seus jogos, a sua intriga).
Em resumo, o que nele aprecio – e indubitavelmente aprecio – não coincide com a forma como encarna e pratica a função presidencial.
2. Ao abraçar continuamente o país inteiro Marcelo está a fazer de Portugal um orfanato. Ao distribuir afectos a eito, transforma-o num sítio de gente oficialmente infeliz que necessita permanentemente de mimo e consolo. Ao fazer-se fotografar e abraçar (cláusulas sempre incluídas nas deslocações) com quem lhe aparece à frente, infantiliza o gesto e relativiza o símbolo do abraço. Nem o país está moribundo, nem saiu duma guerra, nem necessita de ser constantemente redimido ou consolado. Precisa disso, sim, quando é tempo disso, conforme testemunhámos na tragédia do verão passado, mas o resto – o quotidiano que corre como as marés, ora altas, ora baixas – não tem de ser celebrado, beijado ou consolado, a cada instante.
Seja: admito que não haja ainda “ângulo” para concordar com isto ou sequer “ver” o excesso disto face à felicidade geral vigente. Mas no normal entendimento da função presidencial a (divinizada) “proximidade” não será exactamente o patrocínio de circuitos de omnipresença alicerçados numa fértil ubiquidade (beijando, estando, selfizando, indo, abraçando, chegando, dançando, partindo, voltando) como vimos até hoje. É certo que tudo isto lhe trazia um palco exclusivo – prioridade número um – e assegurava tropas (para o que der e vier). Um português feliz e selfizado é um soldado disponível. E não estão aí sondagens iguais às da Coreia do Norte a comprovar o acerto presidencial? E não se afirma que o Presidente da República faz o seu “melhor”? Faz. Do ponto de vista dos seus desígnios políticos e da rota que escolheu para os alcançar, o seu palco está seguríssimo – nunca ruirá –, as tropas, rentes, atrás dele (de tal forma que o Presidente já pôde até meter a marcha atrás), mas e o país? Ou não estamos perante algumas coisas que não deviam ou não poderiam ter acontecido?
3. Marcelo praticou demasiada cumplicidade governamental, elogiou demais, comentou demais, enredou-se demais em questões que não eram “suas” e alertou de menos para algumas opções – leis, reversões, cativações, decisões – que ele sabe que objectivamente não podem deixar de vir a prejudicar o futuro nacional. Fê-lo, disse ele, em nome da “estabilidade”: o seu custo compensará o prejuízo de algumas opções tomadas e que poderiam não ter sido exactamente as mesmas?
Depois veio o Verão, morreram cento e tal pessoas. O confronto que daí resultou com o colossal falhanço do Estado e a leveza dos governantes, avisou-o. O ciclo mudou e com ele o tom e o registo. O rosa virou grisalho, os sorrisos amareleceram. Há semanas escrevi aqui que António Costa passou a estar sob vigilância. O Presidente desmentirá, claro, e o primeiro-ministro continuará a sorrir (mesmo a despropósito), mas hoje há alertas nos discursos presidenciais, coisa que não havia (vigilância produtiva?). Belém quer sinalizar ao país outra exigência face à governação, gesto que de caminho (um dois-em-um) libertará o Chefe de Estado do remorso político em caso de…
Mas sim, quanto tempo perdido em proximidades e cumplicidades. Enquanto Belém e S. Bento se entretiveram em gracejos e festejos, comunistas e bloquistas faziam-se lembrados: as respectivas listas de reivindicações nas agendas – políticas e civilizacionais – de ambos desde o princípio desta história, têm vindo a ser satisfeitas. Que pensará hoje Marcelo do seu silêncio de ontem face ao retrocesso que tais cedências pressupõem hoje e do quanto virão a custar ao país, à primeira subida das taxas de juro, ao primeiro abanão no equilíbrio instável em que se vive hoje na Europa e no mundo? Como avaliou ele a ávida cavalgada das cativações e dos seus nocivos efeitos, por exemplo, na Saúde? O que se passa nalguns hospitais do Estado, penalizando sempre os mais vulneráveis, devia pôr o país no encarnado. E levar o Presidente, afoito no afecto, a “aterrar”, sem anúncio, nem comitiva – seria capaz? – num hospital de Coimbra, no Algarve, em Lisboa. Inquirindo sobre o tamanho das listas de espera, medicamentos em falta, dívidas só a subir, falta de recursos humanos, materiais, técnicos. Não é por acaso que sobre este estado de coisas há um oportuníssimo manto de silêncio mesmo que ele nem de longe disfarce a realidade dos estragos de certas e cegas cativações.
4. Sim houve uma nítida marcha atrás na demarche do Presidente e no desenho do seu mandato: melhor que ninguém sabe que o segundo acto será diferente, mesmo que mais difícil e não totalmente previsível. Há outro mapa politico com a chegada de Rio ao leme de um PSD dividido e cansado; há o calendário eleitoral que vai começar a apertar, alterando forçosamente o ritmo e o rumo das coisas da político; há o aumento de nível de exigências da extrema esquerda, acelerada pelo receio -real – de um bloco central. Em caso de casamento ao centro, ao menos não se poderiam queixar da pródiga herança socialista recebida. E há sobretudo um governo que mesmo que não pareça – distraído como anda com o auto elogio permanente das suas performances – nos surge meio bloqueado: escassseia o investimento público, nada se faz para favorecer ou sequer incentivar o investimento privado; escasseia o trabalho nalgumas áreas governamentais; escasseia – piora – a real procura de uma economia sustentada: chega a ser absurdo o contentamento com o turismo como fonte de riqueza quando não passa de produtor de empregos com baixa qualificação. E há impostos a aumentar todos os dias, uma carga fiscal que começa a ser tão desencorajadora quanto aterradora. Como pensa o Presidente da República – agora menos azougado, mais tranquilo com o seu palco e as suas tropas e por isso mais entretido com o “macronismo” à portuguesa – actuar face a tudo isto no levantar do pano sobre o acto dois da sua peça presidencial?