1. Viena estava muito natalícia e pouco eleitoral. Habituada como estou a comícios, caravanas, carros de som, cartazes, sacos de plásticos, lapiseiras, arruadas e outros circos, estranhei. De relance julguei ser indiferença ou cansaço pela reedição do acto eleitoral na Áustria, mas tratava-se simplesmente – outra cultura – de um modelo mais civilizado de lidar com a apreensão e a representação política. De modo que em vez de cartazes desbotados ou plástico no chão havia lindíssimos fios de luz doirada (sem outra cor, que me apercebesse) que desciam de árvores debruando passeios e emoldurando avenidas; mercadinhos de Natal em casotas, barraquinhas, tendas. Lojas enfeitadas, comércio pujante e muita gente nas ruas. Comprando aqui, bebendo ali, trincando castanhas assadas acolá, por entre ruelas e barracas. É Natal, há muito movimento e sobretudo, mais turistas. Obedientes, seguiam o trajecto sobressaltado de uma bandeirola empunhada por guias papagueando de cor coisas desinteressantes, mas não pareciam infelizes como eu estaria no lugar deles. Ao final do dia, as bicicletas recomeçam a corrida em sentido inverso ao da manhã, os autocarros seguem lotados, os vienenses regressam a casa e de lá não saem. O centro esvazia-se, Viena quase adormece. A festa, se assim me posso exprimir pois o substantivo não quadra com o local, acontece ao fim de semana e mesmo assim com parcimónia. Excepção para a música, claro, mas concertos e óperas (omnipresentes) são por regra no final da tarde, como se a noite não existisse senão para ser vivida no casulo familiar, criando uma atmosfera nocturrna quase tumular no centro da cidade. Ir jantar fora significa quase sempre entrar num restaurante pelas sete e meia e sair pelas nove horas, uma noitada. O calendário horário também é um caso. No sábado, por exemplo, fui convidada para um encantador almoço numa encantadora casa particular. Disseram-me que estivesse pelas 11 horas, “ia-se para a mesa por volta do meio dia”, julguei estar em Marte.

Ao almoço notei que ninguém abordava o tema eleitoral, apesar do país ir ás urnas no dia seguinte. Todos ali, (três gerações á mesa) votavam Van Der Bellen mas fosse pela certeza que tal voto significava antes do mais – ou quase só? — o repúdio pelo outro candidato num acto eleitoral de alternativas pouco felizes, fosse porque havia mais que falar, o meu apetite de debate político deixou-me à fome. Já fora a custo que me habituara à sobriedade silencioso da campanha, vendo apenas meia dúzia de pequenos cartazes, com as fotos dos dois candidatos presidenciais e uma, duas frases escritas por de baixo mas política, pouca. No dia seguinte, domingo eleitoral, reeditei o meu espanto: primeiro na cidade semi-deserta e na pasmaceira de algumas secções de voto que visitei, apesar de me responderam sempre “many people, many people”, aludindo à afluência que me ia parecendo diminuta; e depois, nos arredores, numa casa no campo, onde fora para visitar a sua proprietária, Gertrude, uma arguta, novíssima e formidável mulher de 92 anos que viveu o terrível tempo da ultima guerra, conseguindo formar-se em medicina, especializando-se em doenças do sangue e criando mais tarde, na geografia desolada do pós guerra ,um laboratório de análises clinicas. O primeiro na sua região.

Gertrude estranhou quase indignadamente a minha curiosidade: “Em quem votei?” Por uma fracção de segundo o passado voltara: “Mas…Van Der Bellen, who else?” A pergunta fizera-a perceber que eu admitira a dúvida, a sua resposta sinalizou-me que quase a magoara, ao tê-la formulado. Fosse como fosse, o que fui retendo dos meus variados interlocutores era que, (também aqui) se votava enfaticamente “contra” mais que convictamente a favor. Se chega para inverter uma perigosa tendência, não chega certamente. Norbert Hoffer está lá, e de pedra e cal: nem foi abatido eleitoralmente, nem sairá de cena, pelo contrário, trazendo consigo as sombras negras de um passado impossível. Mas já noite entrada, lembrei-me dos que me iam dizendo que havia “many people” nas secções de voto por onde passara: os 27% de abstenção e os 3% de votos nulos ou brancos provavam isso mesmo. Sim, “many people” dera-se ao trabalho der ir votar, podia ter sido pior.

É ao que estamos reduzidos: à exultação do mal menor como substituto do bem maior. Menos fiabilidade que é isto, é difícil (mas atenção à França e a François Fillon, um assunto a seguir absolutamente pelas surpreendentes coordenadas com que teremos de o saber ler).

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2. Quando voltei estavam vinte graus, havia muito sol e lembrava o verão. Uma doçura inversamente proporcional aos massacres políticos em curso. Por mais que me interrogue, reflicta, procure, só encontro resposta numa sobranceria ressentida que está a fazer lei. Depois de ter sido armadilhado numa história que se mantém imutavelmente mal contada e que ameaça morrer assim, António Domingues (alguém que nunca vi, com quem nunca falei e que se visse na rua não reconheceria), continua a ser massacrado. Porque lhe terão prometido privadamente uma coisa para logo a seguir lhe terem exigido o contrario publicamente? Não sabemos mas devíamos saber.

É que mesmo que Domingues tenha prolongado sem proveito nem sentido uma telenovela feia, demorando a sair de cena, não era ele o seu o único protagonista.

Por isso nada que iguale em fealdade o comportamento dos que tendo tido a responsabilidade maior neste caso, lavaram expeditamente as suas mãos (esquecendo que todo o país viu que além das mãos, tinham também o corpo todo enterrado nesta história!)

O outro massacre em cena e em curso é o do passado mas aí chega a ser risível quanto mais não seja por que nos lembramos de como foi, não estamos patetas, nem somos imbecis. Todos os dias, é como se alguém “da esquerda” desenhasse o mapa da governação PSD/CDS com os pontos cardeais trocados (e tudo o mais inverosimilmente falseado e deturpado). Um dia terei que voltar a este tema de tal forma me confundem as sombras da “culpa” com que querem cobrir quem pensa como eu.

3. Dois louvores mais que merecidos: Isabel Mota foi eleita (por unanimidade) Presidente do Conselho de Administração da Gulbenkian. Em Maio de 2017 sucederá com mérito e por mérito a Artur Santos Silva. A escolha é excelente e — quer-me parecer — a “casa” irá rejuvenescer com uma timoneira que tudo recomenda.

O Almirante Luís Fragoso deixou esta semana o cargo de Chefe do Estado Maior da Armada. Ele não precisa de elogios. Quarenta anos “ao serviço de Portugal na Marinha” (como gosta de dizer) e mais alguns a liderá-la, deixaram assinatura e exemplo. E o seu sentido de serviço público honrando o interesse nacional antes do mais, deixarão grata lembrança.