Spotlight e os abusos sexuais na Igreja: uma verdade que tem de ser contada
João Franco Reis,
O filme “Spotlight” que acaba de receber dois Óscares (incluindo o de melhor filme), conta a difícil missão da equipa de jornalistas do Boston Globe que revelou a tragédia dos abusos sexuais de menores cometidos por padres e religiosos da diocese de Boston, nos Estados Unidos.
Nenhum católico gosta de falar deste tópico; talvez por isso mesmo seja tão importante fazê-lo. Por um lado, sentimos vergonha e dor pelas vítimas enquanto receamos prejudicar a Igreja, descredibilizá-la e denegri-la. Por outro, existe ainda entre os crentes uma ignorância profunda da dimensão do problema.
Foi esse medo de denegrir a Igreja que durante demasiado tempo calou as vítimas e as suas famílias, calou padres, calou Bispos, calou-nos a todos, e o problema perpetuou-se. Esse silêncio tem de acabar e não basta somente os Papas fazerem-no.
O filme conta uma história verídica que temos de conhecer. Os abusos na Igreja Católica aconteceram em números assustadores, não só em Boston, mas em muitíssimos países. Mais, não só houve aquelas violações abomináveis de tantos inocentes como houve encobrimentos, subornos, mentiras, falsas justificações e todo o tipo de atitudes inacreditáveis por parte de responsáveis hierárquicos dos respectivos padres abusadores. Sim, as vítimas não só sofreram os abusos como foram ignoradas e desamparadas por aqueles que tinham a obrigação de se comportarem como aquilo que são, servidores de Cristos chamados a ser “outros Cristos”.
Tudo isto é triste, tudo isto existe, tudo isto é verdade.
Quinze anos depois da famosa investigação, é a hora de perguntar: O que é que a Igreja fez e o que é que mudou?
O que se fez em Boston após o escândalo merecia só por si um outro filme que já não nos causaria tanta vergonha.
A denúncia do Boston Globe derrubou o Cardeal Law; para lhe suceder, chegou o Bispo, frade capuchinho Sean O’Malley, que teve que enfrentar a maior crise mediática da história da Igreja: dezenas de padres pedófilos, centenas, senão milhares, de vítimas, o caos e o pânico instalado. Tinha tudo para correr mal.
E o que fez ele? Começou pelo básico indispensável. Reconheceu a culpa e pediu perdão. Condição necessária, mas não suficiente, para enfrentar a tragédia. A seguir, ouviu as vítimas e investigou os Padres. Vendeu património para pagar indemnizações às vítimas e desenvolveu talvez o maior programa de prevenção destes crimes alguma vez levado a cabo por uma instituição não-estatal. Mas mesmo isso não era suficiente.
Era preciso mais, muito mais. Não só em Boston, como em todas as dioceses americanas, foi preciso enfrentar o problema de frente para que, como na música de Johnny Cash, as palavras de São Lucas nos recordem que “what’s done in the dark shall be brought to the light”. A conferência episcopal dos Estados Unidos encomendou uma enorme investigação independente que custou alguns milhões de dólares.
Os resultados foram arrasadores, mas investigar era a palavra de ordem tanto nos media como na Igreja. Tolerância zero para os criminosos, “background checks” obrigatórios para todos os que lidassem com menores, restrições no acesso aos seminários e processos canónicos sérios que corriam em paralelo com os processos civis e criminais. Gastaram-se mais de 3 mil milhões de dólares em indemnizações às vítimas e várias dioceses foram à falência. Mas ainda assim era preciso fazer mais.
João Paulo II foi pioneiro de reformas canónicas, sob o impulso do então cardeal Ratzinger, mas a mudança acelera drasticamente no pontificado de Bento XVI. Todos os processos diocesanos passam a ser obrigatoriamente comunicados e investigados pelo Vaticano para evitar que algumas dioceses escondessem o problema. Dos 3.400 processos que repentinamente chegaram a Roma, entre 2004 e 2011, 847 padres foram laicizados e 2.572 suspensos de funções.
O Papa Francisco aumenta ainda mais a pressão. Sean O’Malley, já cardeal de Boston, passa a liderar uma comissão constituída não só por especialistas, mas também por vítimas, a fim de propor reformas para serem implementadas em toda a Igreja. Só nos Estados Unidos, três bispos foram demitidos por más práticas em lidar com estes casos.
Será isto suficiente? Ainda não. Apesar de já haver um enorme decréscimo de casos em países como os Estados Unidos ou a Irlanda, em resultado das medidas drásticas adoptadas, todos os anos ainda se descobrem casos novos um pouco por todo o mundo.
Nada do que se possa fazer alguma vez compensará o que antes se deveria ter feito para se impedir um só destes crimes, mas, ainda assim, temos pelo menos que tentar.
Temos de pedir desculpa, temos de ouvir, e temos de falar sem medo para depois se denunciar estes crimes junto das autoridades civis e eclesiásticas. Só assim se combate este flagelo: com a coragem de pôr a vida dos inocentes à frente da reputação da própria Igreja, em linha com as palavras do Papa, “Eu prometo que seguiremos o caminho da verdade onde quer que ele nos leve. Padres e bispos terão de prestar contas quando abusarem ou falharem no proteger as crianças”.
Coordenador dos Catholic Voices Portugal