Na terça-feira passada, Donald Trump estreou-se na Assembleia Geral das Nações Unidas. Segundo a imprensa, o presidente americano quebrou mais uma vez o protocolo internacional ao usar o palco da paz para fazer uma quase declaração de guerra à Coreia do Norte. O que já ficou conhecido como o discurso do “Rocket Man” criou uma onda de repúdio e indignação por todo o mundo, apesar de Trump ter sido igualzinho a si próprio. Já passaram oito meses de presidência e já tivemos mais que tempo para perceber que o seu estilo não vai mudar.

Mais importante que o estilo é, evidentemente, a mensagem. E é sobre esse tema que prefiro escrever. Trump fez, como presidente, três discursos essenciais que, vistos em conjunto, tornam muito explícita a sua visão do mundo: o discurso de tomada de posse, a 20 de janeiro; o discurso em Varsóvia, a 6 de julho; e o discurso na Assembleia Geral das Nações Unidas, a 19 de setembro. Os três discursos têm uma série de elementos em comum. Ora vejam.

O discurso de tomada de posse foi, evidentemente, dirigido ao eleitorado de Trump: a classe média e média baixa que perdeu rendimentos e emprego ao longo das últimas décadas. Essas perdas tiveram, na visão do recém-empossado presidente, consequências calamitosas: a destruição da infraestrutura nacional, o aumento exponencial da criminalidade e da insegurança, a quebra do ânimo e da confiança dos americanos no seu país – e a consequente redução do necessário patriotismo para a América voltar a ser grande outra vez. Os culpados do estado da arte também foram muito bem identificados: os políticos de Washington, que retiveram toda a riqueza, e os agentes estrangeiros que usurparam os lucros e os empregos americanos. As soluções são simples: uma política externa com um só princípio – defender o interesse nacional norte-americano – e uma política económica guiada por uma só palavra – protecionismo.

No discurso de janeiro, Trump disse que não rejeitava a ideia de aliados. Mas foi em Varsóvia, em julho, que descreveu o tipo de aliados que os Estados Unidos estavam dispostos a aceitar. Ora, a Polónia não foi escolhida ao acaso. Varsóvia atravessa um momento de regresso a um nacionalismo robusto, proporcionando ao presidente americano, a caminho da Cimeira da NATO, o palco perfeito para passar a sua mensagem. Os aliados americanos, por excelência, passaram a ser estados nacionalistas. E por nacionalista – na ótica do presidente americano – devem entender-se três características: estados cuja identidade radica na sua própria história (referências a heróis polacos e tragédias coletivas foram mais que muitas) em vez da história da região; estados em que o povo, com a sua força, coragem e espírito próprio (distinto de todos os outros) é a personagem principal, sendo que deve demonstrar características patrióticas e orgulho nos seus feitos; e uma nação que contribui para as instituições internacionais com a sua robustez e carácter, com a finalidade última de contribuir para a sobrevivência da civilização.

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Uma nota explicativa. Desde a II Guerra Mundial o caminho para a paz era o contrário: nações fortes e fracas uniam-se para enfrentar inimigos (ideológicos, não civilizacionais) comuns. Nesses encontros, prolongados por décadas, forjavam traços identitários comuns, que lhes permitiam pensar estrategicamente de forma idêntica (apesar das diferenças de interesses e visões que provocavam diferendos e crises, como é natural entre estados livres). Este era o coração da chamada “ordem liberal”. Na visão de Trump, os atores principais das organizações internacionais são os estados fortemente nacionalistas. Porquê?

A resposta veio no terceiro discurso, o de terça-feira, que nos revela a visão do mundo defendida por Donald Trump. Ruídos coreanos à parte, o presidente foi muito claro num ponto essencial: a soberania é o principal pilar para a paz e prosperidade internacional. De acordo com o presidente americano, cabe a cada Estado defender, acima de qualquer valor, os interesses dos seus cidadãos (independentemente do regime, cultura, sonhos ou valores internos) e, logo de seguida, respeitar os direitos dos outros estados soberanos. Até porque a defesa dos cidadãos também implica responsabilidade internacional: ou seja, trabalhar “lado a lado com outros estados com base no respeito mútuo” e na procura construtiva de soluções para a paz (leia-se, essencialmente, as ameaças do terrorismo e dos estados pária – agora a Coreia do Norte e o Irão – que ameaçam a civilização). Música para os ouvidos chineses e russos (tal como constatou Sergey Lavrov).

Sim, compreende-se o burburinho acerca das palavras de Trump na Assembleia Geral das Nações Unidas. Mas, pensando duas vezes, talvez não seja absurdo de todo. O presidente americano não fez mais que anunciar aquilo que já se sabia: que o conceito de paz liberal, tal como o conhecíamos, está suspenso por tempo indeterminado.

Agora, o que vale (novamente) são a soberania e as capacidades militares (referidas no início do discurso), o que verdadeiramente hierarquiza os Estados e transforma a História. Há duas formas de o fazer: ou em concerto de nações – mas para isso era necessário que Trump se comprometesse seriamente com o multilateralismo entre os poderosos, o que é altamente improvável – ou através de equilíbrios de poder, pequenos casamentos de conveniência em que os noivos são escolhidos caso a caso, com base em interesses comuns.

Ambos os modelos – o concerto e o equilíbrio – resultaram no passado. Mas também falharam redondamente. E estão mais ou menos empurrados para o fundo da gaveta há setenta anos, pela sobreposição de outros valores que passámos a estimar mais no Ocidente: segurança coletiva, multilateralismo, mercado livre, cooperação concertada, primazia das instituições democráticas e direitos humanos, interna e externamente. É uma nova experiência a “desocidentalização” do mundo – e logo com a assinatura do presidente do país que liderou, historicamente, o Ocidente. Vamos ver como resulta.