Continuando-se a discutir esses horripilantes alojamentos locais e arrendamentos de curta duração – por oposição ao passado glorioso, tranquilo, pacífico, de amor generalizado entre os vizinhos que se vivia antes das enchentes de turistas – resolvi fazer serviço público. Vou contar a minha experiência de vida numa zona histórica.
De 2001 a 2008 morei numa das encostas históricas de Lisboa, num apartamento que reabilitei. Foi antes de os habitantes das zonas históricas de Lisboa serem ‘expulsos’ pelos turistas e pelas rendas caras que os senhorios agora conseguem obter (aproveito para explicar devagarinho: se os senhorios não conseguirem cobrar rendas ditas ‘caras’ pelas casas, também não vão gastar o seu dinheiro reabilitando-as). Curiosamente, estas pobres pessoas que foram ‘expulsas’ já não moravam nas zonas históricas naqueles anos, apesar das rendas mais baixas. Não sei o que os impedia de lá residirem. Certamente estavam todos a trabalhar como voluntários nos campos de refugiados no sul do Sudão. Ou, em alternativa, fazendo viagens de autoconhecimento como backpackers na Índia, descobrindo, entre outras coisas, a reação da pele à falta de banho durante três meses.
Adiante. Descrevo alguns dos meus vizinhos. Tudo gente com arrendamentos permanentes. Já na altura eram bastante internacionais. Por baixo de mim morava um casal de franceses. Tinham o costume de à uma da manhã começarem a ouvir música (se é que se pode aplicar o termo àquela mescla de gritos que se imaginaria virem de uma sala de interrogatórios de Guantanamo, de rugidos dos animais mais ferozes da natureza e de rock alternativo). O prédio é antigo, a insonorização entre pisos é irrisória, o volume da música era suficiente para impedir qualquer sono. Com regularidade discutiam como se se pretendessem assassinar. Os berros franceses eram acompanhados de sons que sempre concluí tratarem-se de destruição de mobília. Ah: a paz e tranquilidade que a ausência de turistas permite.
Felizmente estes vizinhos saíram antes do meu filho mais velho nascer. A criatura que os substituiu era uma estudante universitária portuguesa. Ouvia música em tom suscetível de ser apanhada por ouvidos moucos no Terreiro do Paço. Incluindo quando o dito filho mais velho nasceu e precisava de dormir a sesta ao fim de semana. A criatura tinha um pai que por vezes visitava a filha. Era versátil e gostava de bricolage: dedicava-se a cortar ferro pela noite fora no pequeno terraço do apartamento, mesmo debaixo do meu quarto. Um descanso. Felizmente nada tão incomodativo como trinta segundos de umas malas de viagens na escada depois de jantar.
Um dos apartamentos por cima estava arrendado a uma instituição de caridade que tratava de idosos carenciados. Uma senhora nessas condições passava todas as noites gritando de dores (de resto vários vizinhos apresentaram queixa por esta situação, tanto do barulho como da eventual falta de tratamento – e analgésicos – à idosa). No outro viviam três rapazes asiáticos propensos a ruidosas festas noturnas. Uma calmaria sem turistas.
É certo: nunca tive problemas de segurança. Por vezes até me esquecia da chave do lado de fora da porta e sempre alguém passava e tocava para me avisar. E havia vizinhos simpáticos que não me incomodavam. Uma família de pintores ucranianos que me convidavam para as exposições que a embaixada organizava. Uns professores do Instituto Espanhol. Um casal de galegos que haviam imigrado há décadas para Lisboa (com arrendamento antigo). Pela minha parte, aposto que também incomodei os vizinhos. A criança mais velha viveu lá os primeiros três anos de vida, o que incluiu umas tantas noites iniciais com choros.
Como se vê, os achaques com os turistas não se devem aos incómodos que causam – porque outros equivalentes são causados por residentes habituais. De resto a obsessão com o AL é só uma faceta da mania anti turistas, essa gente que nos surripia os lugares nas esplanadas e nos abalroa nos passeios. Devem-se – vamos assumir – às peneiras nacionais que repudiam que sejamos (é começar já a torcer o nariz de desdém) um ‘país de camareiros’ (como uma vez ouvi num serão de gente de direita – sim, sim – que pouco depois iria quase toda para cargos de assessoria ao governo PSD-CDS).
Vejamos: nós estamos destinados a ser a Silicon Valley. Que sejamos um país de trabalhadores com baixas qualificações e de uma iliteracia estonteante, não vem para o caso. Se não pudermos ser o polo mundial da inovação, não seremos nada e viveremos à pala de rendimentos mínimos e subsídios de desemprego. Isso é que é adequado à nossa dignidade. Aproveitar o que temos – sol, clima, paisagens bonitas, monumentos assombrosos, gastronomia deliciosa, praias – não pode ser, era o que faltava alguém ter de descer a ganhar dinheiro entretendo turistas ou mudando as camas onde eles dormem. Isso é para imigrantes ou refugiados trabalhando para grandes empresas hoteleiras.
Tenho uma amiga com dois apartamentos de família na Baixa que transformou em AL. A sua casa em Lisboa, na adolescência, era a da avó, um palacete ali no Campo Grande. Ora quando necessário, é ela ou o marido que vêm mudar as camas e fazer as limpezas. Nas suas memórias da Índia, Pamela Mountbatten conta como a sua mãe, a formidável vice-rainha Edwina Mountbatten, antes de um jantar de estado limpou o cocó do cão doméstico de um dos corredores da Viceroy´s House de Delhi; os criados indianos recusavam-se. A Princesa Diana ganhou dinheiro cuidando de crianças e limpando casas de amigos. Nenhuma tarefa ética e legal tinge de indignidade quem a pratica. Mas é sabido: quanto mais pobres, mais as pessoas têm uma imagem de si próprias tão frágil que não suporta a prática de certas tarefas. É esta insegurança social (entre outros) que se prepara para engasgar um negócio onde Portugal tem uma tremenda vantagem competitiva.