A avaliação do resultado das eleições primárias no partido socialista espanhol (PSOE) depende da via que seguirmos. Se for a do PS português, que tendo perdido as eleições de 2015 não hesitou em aliar-se com a extrema-esquerda com grande êxito mediático, então a vitória do antigo secretário-geral Pedro Sánchez, o qual também perdera duas votações sucessivas para o parlamento espanhol, é capaz de ser uma excelente notícia para o governo português… Em vez disso, se observarmos aquilo que está acontecer no resto da Europa, onde os partidos socialistas não só estão a perder o poder em quase todos os países como a fragmentar-se sob a pressão das suas bases esquerdizantes, então o regresso de Sánchez arrisca-se a revelar-se uma vitória de Pirro na Europa e não só.
O caso mais recente é o da França, onde a ascensão do desconhecido Hamon valeu ao PS local 6% dos votos na primeira volta das eleições presidenciais, enquanto o antigo PS e actual «insubmisso» Mélenchon teve quase 20%, ficando todavia ambos fora da segunda volta. Vamos ver quantos deputados elegerão em Junho nas legislativas. Quanto a Sánchez, perdeu 1,5 milhões de votos entre as legislativas de 2015 e as de 2016, depois de o PSOE já ter perdido mais de 4 milhões de eleitores em 2011 durante a crise financeira!
Lê-se com frequência que estes movimentos dos partidos políticos decorreriam de uma hipotética crise da democracia representativa que os faria correr atrás de eleitores cada vez menos fiéis às antigas lideranças, agora designadas por «elites», desde os Estados Unidos à Grã-Bretanha. Na realidade, é a deriva dos antigos partidos socialistas perante a concorrência dos movimentos populistas que se reclamam da esquerda que está a provocar a actual crise. Mais perto do que se passa realmente, creio eu, estão vários observadores que desde o final do século passado, nomeadamente em Espanha, já tinham identificado uma efectiva «crise da representação política», a qual se manifesta em Portugal através sobretudo de uma das taxas de abstenção mais altas da Europa.
Ora, o que aconteceu com esses militantes de base que apoiaram nas «primárias» do PSOE um candidato que adoptara um comportamento cada vez mais populista, apelando diretamente à «militância», sem qualquer mediação partidária? As «bases» deram-lhe 50% dos votos – isto é, cerca de 70.000 pessoas – e dividiram o partido ao meio, muito provavelmente sem esperança de colar os cacos tão cedo. É aliás típico – e perverso – de um sistema mediático como as «primárias» que Sánchez tenha tido mais apoio onde o PSOE tem menos aderentes e menos votos, como a Catalunha, enquanto as regiões que mais votam no PSOE e o partido tem mais membros, como a Andaluzia, são as que menos apoiam o pretenso líder carismático!
Sánchez vê-se assim diante de um partido sem instâncias de intermediação e de uma bancada parlamentar da qual ele próprio não faz parte e que lhe é basicamente hostil, ao mesmo tempo que se encontra sob a pressão demagógica permanente do «Podemos» – um dos mais acabados movimentos populistas europeus, que tanto defende a Venezuela como o Brexit – no sentido de derrubar o governo do PP. Sánchez fôra afastado da liderança do PSOE por querer levar o país a uma terceira eleição legislativa que muito provavelmente lhe faria perder ainda mais votos e agora volta à chefia do partido com essa ideia fixa instilada pelo «Podemos», sem qualquer outra palavra de ordem que não seja o «abaixo a corrupção» de todos os populistas.
Ora, com a actual composição do Congresso de Deputados espanhol, existe de facto uma possibilidade aritmética de derrubar Rajoy, mas todos os comentadores excluem qualquer hipótese de formar uma maioria governamental contra o PP. Para constituir tal maioria (mais do que os 169 votos conjuntos do PP e dos Ciudadanos em 350 deputados) seria necessário que Sánchez levasse o PSOE a aliar-se não só com «Podemos», o qual lhe faz concorrência directa nas urnas e será sempre visto como o protagonista desta operação do tipo «Quanto pior melhor!», mas também a fazer algo de impossível no contexto espanhol, ou seja, o PSOE aliar-se aos independentistas mais radicais da Catalunha, do País Basco e por aí fora…
Os primeiros a revoltar-se contra tal operação, que destruiria de vez o velho PSOE e entregaria as suas sobras ao «Podemos», seriam os deputados do próprio PSOE! Em contrapartida, não se pode excluir totalmente a insanidade de essa aliança espúria entre socialistas, populistas e independentistas derrubarem o PP. Isso, porém, significaria – se a democracia eleitoral subsistisse – que teria de haver novas eleições e, aí, o mais provável é que o PP ganhasse as eleições com uma confortável maioria absoluta que correria de vez com Sánchez!
PS. A confirmar que eu não exagerei na semana passada ao inquietar-me com «O regresso dos três FFF», a Revista do «Expresso» de dia 20 ostentava na capa um retrato gigante de «São Salvador» com as mãos apropriadamente juntas e o rosto ligeiramente inclinado… Afinal, eu sempre tinha alguma razão!