“Os meus contos infantis surgiram quando os meus filhos tiveram sarampo e tinham que estar quietos”, contou Sophia de Mello Breyner Andresen numa entrevista a Eduardo Prado Coelho, em 1986. O motivo que levou a poetisa a entrar no mundo da literatura infantil foi tão simples quanto isto. Os filhos cresceram, o número de livros para crianças também, mas Sophia é quase sempre falada pela sua obra poética. No dia em que a escritora chega ao Panteão, revisitamos a Sophia das histórias infantis que o país conheceu, sobretudo, nos bancos de escola.

Sophia podia ter pegado em contos infantis de outros autores para sossegar os filhos. E tentou, mas não ficou satisfeita. “Comecei a ficar muito irritada com as histórias que lia. Primeiro, com a linguagem sentimental, com a linguagem ‘ta-te-bi-ta-te'”, explicou na mesma entrevista, publicada pela revista número 6 do Instituto de Cultura e Língua Portuguesa. Assim nasceram A Fada Oriana, A Floresta, O Rapaz de Bronze O Cavaleiro da Dinamarca, alguns dos títulos que lhe valeram prémios nacionais e internacionais. Recentemente no seu espólio foi encontrado um livro inacabado, Os Ciganos, que o neto Pedro Sousa Tavares decidiu terminar, em 2012.

“A Sophia tem um universo próprio, uma escrita absolutamente mágica, fascinante, sem cair naquela infantilização que muitas vezes se fazia. É uma escrita inteira, pura, no sentido de apresentar às crianças aquilo que são os valores fundamentais da vida, fascinando-as sem as infantilizar”, diz o escritor Fernando Pinto do Amaral ao Observador. A necessidade de partilhar com os outros a “imensa admiração e fascínio” que sempre sentiu pela escritora, falecida em 2004, levou-o a publicar o livro A Minha Primeira Sophia, em 2009.

O primeiro livro infantil escrito pela poetisa foi A Menina do Mar, em 1958. Nessa altura, o seu filho mais velho, Miguel Sousa Tavares, tinha seis anos. Sophia inspirou-se numa história que a sua mãe lhe tinha contado em pequena sobre uma menina que vivia nas rochas, provavelmente na praia da Granja, no distrito do Porto, onde Sophia passava o verão.

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a menina do mar, fernanda fragateiro

Capa de “A Menina do Mar”, com ilustrações de Fernanda Fragateiro

Mafalda Milhões, ilustradora e responsável pela livraria infantil O Bichinho de Conto, em Óbidos, conta que A Menina do Mar e A Fada Oriana são os livros da escritora que os clientes mais levam para casa. “São os mais icónicos, obrigam-nos a imaginar movimentos”, explica ao Observador.

A ilustradora chegou a ser contactada pela editora Figueirinhas, que publica os livros infantis de Sophia de Mello Breyner, para refazer a ilustração da coleção. Recusou. “Achei que o meu tipo de ilustração não era o adequado, não quis impor a minha imagem. A ilustração devia ser feita por uma pessoa que tivesse uma ligação mais próxima à terra e à natureza”. Fernanda Fragateiro acabou por ser a escolhida, o que para Mafalda foi uma boa decisão.

Estética e ética, marcas da literatura infantil em Sophia 

“Pedra, luz, fruto, manhã, mar, vento, nisto todos nos reconhecemos, por isso citamos de cor os seus poemas e passamos de geração em geração os seus livros infantis, com que tantos de nós aprendemos o fascínio da leitura”, disse Miguel Sousa Tavares, no passado dia 25 de junho, durante uma sessão de homenagem a Sophia de Mello Breyner, no Porto.

Mafalda Milhões lembra-se de a mãe e a tia lhe lerem A Fada Oriana em criança e já fez questão de passar a tradição às duas filhas, Matilde e Maria, que é a mais pequenina mas já sabe quem é a Menina do Mar. Num dia em que passeava com a Matilde encontrou o livro d’A Fada Oriana numa feira de velharias e não resistiu a comprar. “Sentámo-nos as duas a ler a história e depois fomos fazer uma casinha para a fada. Ainda hoje a Matilde faz casas para as fadas nos jardins”, conta, explicando que Sophia mostra que a fantasia também pode estar no quotidiano. Se tiver uma terceira filha, Mafalda chamar-lhe-á Sofia.

a fada oriana

Capa de “A Fada Oriana”, com ilustrações de Natividade Corrêa

Fernando Pinto do Amaral destaca a estética e a ética na escrita de Sophia. Estética do ponto de vista de serem belas as coisas, a beleza do mundo, a natureza mais profunda, as florestas, os rios, como se pode ver em A Menina do Mar e na forma como a escritora descreve o fundo do mar. Sem esquecer a ética, “o bom, o bem, o que realmente são valores eternos”. A Fada Oriana, a fada boa que é altruísta, tem essa lição. “Quando nos esquecemos de nós próprios e vivemos para os outros, quando nos pomos no lugar do outro”, explica o comissário do Plano Nacional de Leitura. Por isso, mais do que uma influência enquanto escritor, Sophia de Mello Breyner foi, para Fernando Pinto do Amaral, uma influência como pessoa. “Esses aspectos tocaram-me como pessoa”.

André Letria é mais uma prova de que a influência de Sophia vai além da escrita. O ilustrador tem no universo da autora “uma referência”, como diz ao Observador. “As obras tornaram-se clássicos da literatura e referências constantes ao longo de várias gerações. Tive a sorte de crescer com aqueles textos e, por isso, mesmo sendo ilustrador, acabei por ver nos livros dela essas referências”.

Para Mafalda Milhões, “a Sophia é uma escritora que ultrapassa todas as faixas etárias, não pertence a um tempo literário nem tem um só destinatário”.

“É aquela escritora que está condenada a prevalecer no tempo e no espaço. Muito terra a terra e ao mesmo tempo muito poética, tinha uma capacidade de criar e dar a ler imagens únicas”, completa a livreira e ilustradora.

A escritora Joana Pires Lopes, que venceu este ano o Prémio de Literatura Infantil, concorda. “Sophia tinha uma escrita muito envolvente. Também se nota que é uma poetisa que está a escrever, a linguagem é poética”.

Sophia de Mello Breyner Andresen vai ser homenageada esta quarta-feira, com a entrada no Panteão Nacional. Mas a melhor homenagem que se pode fazer à sua escrita é reconhecer que ela continua “deslumbrantemente atual”, disse Miguel Sousa Tavares, há uma semana, no Porto.

Atualidade que não se perdeu na literatura infantil, mesmo para os adultos. “É  sempre bom ler e reler os livros”, diz Joana Pires Lopes. “Já reli A Fada Oriana em adulta e é diferente a interpretação que lhe dou agora que estou mais crescida. Vamos fazendo novas descobertas”.