No dia 19 o Observador discutiu os números e as posições de quem defende e de quem é contra a lei da cópia privada. De um lado as organizações que representam os autores e que defendem a atualização da lei e do outro as que representam as empresas que comercializam os produtos que vão ser taxados. E foram ouvidas também algumas entidades que representam os consumidores. Mas o que é, afinal, a lei da cópia privada e o que é que ela representa para os consumidores?
Simplificando: a lei da cópia privada é uma exceção à lei dos Direitos de Autor. Confuso? Vamos por partes.
A lei dos Direitos de Autor é fácil de explicar: é o conjunto de normas que defende o criador de conteúdos intelectuais e lhe garante a devida compensação pelo seu trabalho. A lei é extensa e pode ser consultada aqui. A lei da cópia privada, atualizada pela última vez em 2004, regula o disposto no artigo 82º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos: compensação devida pela reprodução ou gravação de obras. É por isso que se diz que se trata de uma exceção à lei do Direito de Autor, porque contempla precisamente a possibilidade do consumidor fazer uma cópia de um original, seja um disco, um livro ou um filme, por exemplo — sendo essa cópia para uso exclusivamente privado.
Esta lei aplica-se aos dispositivos “que permitam a fixação e reprodução de obras” e respetivos suportes, ou seja, uma fotocopiadora ou uma cassete ou um CD, qualquer meio onde se possa reproduzir (copiar) a obra protegida pelo Direito de Autor. A atualização prevista pelo programa deste Governo (página 130) vem introduzir outros suportes, mais adequados ao panorama tecnológico atual: os sistemas de armazenamento digital. O projeto de lei que vai ser discutido esta quinta-feira no Conselho de Ministros acrescenta às velhas cassetes a esmagadora maioria dos suportes digitais, que incluem os discos rígidos e SSD, as pen drive, os cartões de memória, os telemóveis, os tablet e as “boxes” das televisões (que geralmente incluem um disco rígido que permite a gravação de programas para ver mais tarde).
A lei tem em mente a proteção dos direitos dos artistas e dos seus representantes mas em todos os meios há quem se posicione contra e a favor, seja no meio político, económico e artístico. Peguemos no exemplo de uma das bandas mais carismáticas do país: os Xutos & Pontapés. Tim, o vocalista da banda, afirmou através da sua página no Facebook que é a favor da lei — o acesso ao texto é livre, mesmo para quem não tem conta nesta rede social. “Este texto é uma tomada de posição, eu sou a favor da Lei da Cópia Privada” e explica porquê em vários pontos. Não precisamos de sair dos Xutos para encontrar quem discorde: o guitarrista Zé Pedro considera a lei “ridícula, abusiva e penalizadora”. O músico, que também é consumidor, diz: “Eu compro música na internet e portanto tenho de levá-la numa Pen, CD ou disco externo, não tenho de pagar outra vez por isso.”
E foi precisamente esta linha de argumentação que nos levou a falar com Maria João Nogueira. Conhecida na blogosfera e nas redes sociais por Jonas, tem dedicado muito tempo a refletir (criticamente) sobre o tema — a etiqueta (hashtag) utilizada na discussão é #pl118 (projeto de lei n.º 118). O que a move e indigna “não é o preço [da taxa], é o princípio”. Maria João Nogueira não hesita em afirmar que a lei da Cópia Privada “é uma injustiça brutal, um absurdo nos dias que correm” e fundamenta a sua opinião na forma como “o sistema está montado para que alguns autores sejam remunerados pelo prejuízo que é causado pela cópia privada — prejuízo que não existe”. Maria João explica melhor: “a lei da cópia privada identifica a existência de um prejuízo para o autor. Mas onde, se eu comprei o original do CD e apenas quero fazer uma cópia para ouvir no carro, onde é que está o prejuízo para o autor? Porque é que eu tenho de pagar uma taxa sobre isso?”
“Eu ao principio não acreditava que isto fosse assim. Quando tu explicas a uma pessoa que ela vai ter de pagar para fazer uma cópia de um artigo que ela comprou, ninguém acredita.”
Maria João Nogueira defende que os autores devem ser remunerados pelo seu trabalho e mostra-se contra a cópia ilegal (pirataria), adiantando que esse argumento é usado extensivamente para defender a aplicação da lei da cópia privada, ou seja, que se parte do princípio que o consumidor vai armazenar conteúdos ilegalmente; a forma encontrada para ressarcir os autores deste suposto “prejuízo” é taxar todos os dispositivos onde seja possível armazenar dados. “Isto podia fazer algum sentido quando os grandes produtores de conteúdos eram a indústria [da música, do cinema, etc.]. Hoje em dia, o paradigma mudou, os produtores de conteúdos são as pessoas, quem neste momento está a precisar de espaço para armazenar conteúdos [fotografias, vídeos] são as pessoas”. Maria João Nogueira não tem dúvidas, e diz-nos que “a indústria do entretenimento tem imensa dificuldade em desapegar-se destes velhos hábitos, taxar é o mais fácil.”
Ou seja, a lei da cópia privada incide sobre os dispositivos que os consumidores usam para fazer e arquivar as fotos das férias. Mesmo que o utilizador não use o tablet ou o computador para descarregar música ou filmes, pagará por ter essa possibilidade. Num dos pontos da declaração, o vocalista dos Xutos & Pontapés afirma: “O que está em causa é a possibilidade que a cópia tem de ser armazenada e vendida ou passada a terceiros. Se é possível e mau, vai acontecer (outra lei, esta de Murphy)” e noutro ponto, que “a partilha de ficheiros é global e é corrente, não vale a pena esconder o sol com a peneira nem mentir, mais vale assumir e regulamentar.”
O Observador falou com João David Nunes, presidente da AGECOP (Associação para a Gestão da Cópia Privada). Sobre a lei que vai amanhã a Conselho de Ministros, afirma que “já não era sem tempo, a lei atual está completamente desatualizada. O mercado evoluiu e a lei não e isso precisa de ser corrigido.” As receitas caíram 90% em oito anos e isso leva a que, em termos práticos, a Associação tenha atualmente para distribuir pelos seus milhares de associados apenas 300 mil euros — a Sociedade Portuguesa de Autores (que preside à direção da AGECOP) tem cerca de 24 mil associados em Portugal e representa 3 milhões no mundo inteiro — entre autores, intérpretes, produtores, órgãos de comunicação social, etc.
Em relação à confusão entre cópia privada e pirataria, João David Nunes é perentório: “São coisas completamente diferentes; a pirataria é ilegal, é crime. Se essa confusão existe, não fomos nós que a criámos. A lei da cópia privada é a favor do consumidor, porque lhe permite fazer uma cópia para uso privado.” Em relação aos valores em causa, diz que “são muito baixos e não vão trazer implicações para o consumidor”, e usou o exemplo de um smartphone com 16 GB de memória, ao qual será aplicado cerca de 2 euros de taxa, valor que alega ser “suportado pelo importador”.
E na nuvem (cloud), como será? Maria João Nogueira desconhece a proposta de lei, mas não se admira: “O documento não é público, é tudo mantido em grande secretismo” (mas entretanto o blog Blasfémias teve acesso ao documento). Além disso, no seu entender, a opinião pública é constantemente manipulada com o cruzamento da lei da cópia privada com a pirataria. “Como eles [os agentes da indústria] não conseguem fazer passar para as pessoas a lei como ela é, metem a pirataria no meio para confundir e esse é um argumento a que as pessoas são sensíveis. Mas a lei da cópia privada não tem nada a ver com a pirataria, ela baseia-se no pressuposto da cópia de conteúdos ao qual tenha tido acesso legal.”
A atualização desta lei tem andado para a frente e para trás, já é a terceira vez que está para ser aprovada (as anteriores ocorreram em 2012 e 2013). Há um diferendo de opiniões no Governo entre o titular do ministério da Economia, Pires de Lima, e o secretário de Estado da Cultura Barreto Xavier — refletindo as diferentes posições que os partidos da maioria têm sobre este tema. Assim sendo, compete ao primeiro-ministro gerir o dossier e fazer o Governo chegar a um consenso. Maria João Nogueira considera que os blogues e as redes sociais têm sido muito importantes na pressão política (em especial o Twitter). “Em 2012, quando nos apercebemos [o conjunto de pessoas que se interessou por isto] começámos a chatear os políticos nas redes sociais. A comunicação social quase deixou passar, mas conseguimos passar a mensagem.” Resta saber o que vai acontecer amanhã no Conselho de Ministros.