Foi a 31 de março que Ricardo Salgado escreveu uma carta a Carlos Costa, governador do Banco de Portugal, contestando de forma veemente — e ameaçadora — o desejo do próprio governador de afastar rapidamente a família Espírito Santo da administração do BES. Poucos dias antes, a 26 de março, segundo documentos revelados hoje pelo semanário Sol, Carlos Costa teria deixado essa intenção clara a Salgado, apontando uma data para a saída definitiva da família: 28 de abril, numa assembleia-geral do banco.

O Banco de Portugal alegava “um problema de avaliação de idoneidade, extensível a toda” a família, acrescentando noutro encontro com o administrador Rui Silveira, que só aceitaria que ficassem “nas filiais dos bancos no estrangeiro”.

Depois disso, Ricardo Salgado entrou numa corrida contra o tempo. As gravações de uma reunião do conselho superior do Grupo Espírito Santo, realizada já no dia 2 de junho, mostram Salgado a explicar aos diferentes ramos da família tudo o que fez para evitar uma saída imediata e ganhar tempo.

Essa carta [escrita a Carlos Costa] li depois ao Presidente da República, ao primeiro-ministro, à ministra das Finanças e ao José Manuel Durão Barroso”, disse Salgado.

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E o que dizia a tal carta? Que tudo cairia se os Espírito Santo fossem afastados. Avisava o governador dos “riscos sistémicos” para o banco e para toda a banca, para uma “desvalorização de dimensões imprevisíveis” do banco e do GES, que poria em causa o pagamento dos empréstimos. Em síntese, uma “liquidação desordenada do GES e necessidade de intervenção [do Estado] para recapitalizar” o BES com dinheiros públicos. A ‘ameaça’ que, sabemos hoje, foi contornada pelo Governo e Banco de Portugal meses mais tarde, recorrendo à resolução do banco e à criação do Novo Banco.

Tempo ganho?

Como é que a queda da família podia levar a tudo isto? A explicação de Salgado, transmitida também nessa carta ao governador lida a meio mundo da política portuguesa, foi esta: “Por ser posto em causa o bom nome Espírito Santo”, todos os acionistas de referência iriam sair num ápice do BES – deixando-o à beira da falência. Sairiam os venezuelanos e angolanos — Salgado diz que a garantia dada por Eduardo dos Santos seria revogada, o que aconteceu no dia da resolução. A garantia do Presidente angolano, aliás, é justificada “em boa parte pela consideração e confiança” na família, nas palavras de Salgado usadas nessa carta.

O que Salgado exigia a Carlos Costa, recusando demitir-se, era tempo para segurar o grupo — e o banco. Segundo conta o Sol, conseguiu pelo menos isso. Diz Ricardo Salgado, nesse junho, aos membros do Conselho Superior: “No dia 8 de abril fui chamado. O governador aceitou adiar para depois do aumento de capital (marcado para maio) a alteração da governance. Foi parado o processo de substituição dos membros do grupo, que poderá evoluir para uma situação mais digna. Após o aumento de capital o BdP poderá chamar-nos para nos comunicar a sua orientação”.

Assim foi, como sabemos hoje. A 19 de junho soube-se que Salgado iria apresentar a renúncia ao cargo do BES, logo depois que toda a família iria para um novo Conselho Consultivo, já em março sugerido pelo governador.

Mas nesta reunião da família, no dia 2 do mesmo mês, já depois do anúncio do aumento de capital e 9 dias da sua concretização, percebe-se já a enorme dificuldade em gerir as contas do Grupo e do BES. Nesse dia o tribunal do Luxemburgo anunciava uma investigação à ESI e ESFG, as duas principais holdings do grupo, que deixou a família em choque e levou Salgado a ligar a Carlos Costa, pedindo a intervenção da CGD (depois negada pelo Governo).

A “fraude” do papel comercial, segundo Salgado

No encontro, Salgado admite: “Isto agora vai piar mais fino, temos aqui um problema sério. Pode ser dramático para o BES. Vai ser muito difícil segurar o grupo nestas circunstâncias”. André Amaral, representando Mário Mosqueira do Amaral (já falecido) põe o dedo na ferida: “O problema é que o timing da tesouraria é mais premente do que o do capital. Sexta-feira passada tivemos quase um problema grave por causa de três milhões”.

É neste passo da reunião que Salgado deixa uma frase também reveladora, na altura em que se discute a necessidade de um crédito de emergência da CGD, que obrigaria o grupo a um plano de renegociação de dívidas: “Isso para nós também é importante que seja renegociado. Estamos prestes a ser acusados de fraude. O risco de fraude incide mais no papel comercial de retalho”. É a primeira referência a um esquema de financiamento do GES, através dos balcões do banco, que o governador do Banco de Portugal diria ser “fraudulento” na noite da resolução do banco.