Uma pessoa, um simples “sim” ou “não”, um gesto com a cabeça a indicar sinal positivo ou negativo. Durante mais de duas décadas, as decisões sobre como era aplicado o regime fiscal do Luxemburgo às empresas esteve nas mãos de apenas uma pessoa, Marius Kohl, reformado desde o ano passado.

A Comissão Europeia anunciou, este mês, que está analisar se o acordo entre o Luxemburgo e a empresa norte-americana Amazon.com violou as regras de ajuda de Estado, que impedem os países da darem subsídios a uma empresa individual. Estão também em investigação acordos semelhantes com a Fiat Chrysler e mais poderão surgir. Tanto as empresas, como o Governo do Luxemburgo garantem que cumpriram todos os requisitos legais.

Marius Kohl, agora com 61 anos, está reformado há um ano da Sociètès 6, a autoridade estatal responsável por estas decisões.

No Luxemburgo, as empresas estrangeiras têm acesso a deduções e a criar holdings que conseguem cortar os seus gastos com impostos dos 29% da taxa normal para perto de zero, e pagar pouco ou nada em impostos sobre royalties, dividendos, juros, proveitos de liquidações ou ganhos de capital.

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O jornal norte-americano The Wall Street Journal fez uma grande investigação sobre os negócios das empresas com o fisco luxemburguês, e, no Luxemburgo, falou com a pessoa responsável por decidir estes processos.

Marius Kohl, agora com 61 anos, está reformado há um ano da Sociètès 6, a autoridade estatal responsável por estas decisões. No seu escritório na rue du Fort Wedell, aprovou milhares de acordos fiscais com multinacionais. Todos os anos, a Sociètès 6 tem como função (oficial) determinar quanto devem pagar em impostos as cerca de 50 mil holdings registadas no país, sendo que a maioria dela tem casas-mãe estrangeiras.

Os reguladores internacionais dizem que a Sociètès 6 tem atuado mais como um facilitador que tem conseguido atrair empresas para o Luxemburgo, enquanto permite às multinacionais fugir aos impostos devidos noutros locais.´

Marius Kohl, ou o “senhor veredicto” como é conhecido no círculo financeiro, era o único com autoridade para aproveitar ou rejeitar acordos fiscais. A facilidade e a rapidez com que os acordos eram aprovados atraíram milhares de empresas durante os anos em que Kohl era responsável por esta pasta, segundo alguns consultores fiscais estabelecidos no Luxemburgo, citados pelo jornal.

“Eu podia dizer sim ou não. Às vezes é mais fácil se tiver que perguntar a apenas uma pessoa”, disse Marius Kohl.

“A riqueza do Luxemburgo vem de ajudar empresas a não pagar os seus impostos nos países onde o valor é criado”, expicou Pascal Saint-Amans, um responsável da OCDE.

A Irlanda, muito por causa da Apple e da Google, e a Holanda, recentemente devido ao caso da Starbucks, têm estado sob a atenção da Comissão Europeia, mas nenhum destes países tem sido tão agressivo como o Luxemburgo segundo os reguladores europeus.

“A riqueza do Luxemburgo vem de ajudar empresas a não pagar os seus impostos nos países onde o valor é criado”, expicou Pascal Saint-Amans, um responsável da OCDE que lidera os esforços internacionais de reforma das regras fiscais para as empresas.

O Luxemburgo defende-se: “Nós sempre cumprimos com as regras internacionais”, diz o ministro das Finanças do Luxemburgo, garantindo que o seu país não é um paraíso fiscal.

Mas os números não ajudam à posição do Luxemburgo. Segundo os números do Departamento do Comércio dos Estados Unidos, 9% dos lucros das empresas norte-americanas no estrangeiro foram gerados em subsidiárias no Luxemburgo, mas estas têm apenas 0,1% dos seus trabalhadores no país. A taxa de IRC paga por essas empresas nos últimos anos no Luxemburgo tem sido de 0,4%. Grande parte dos lucros das empresas americanas com subsidiárias no estrangeiro não regressa ao país para pagar a taxa de 35%.

Segundo o FMI, o Luxemburgo, com os seus 550 mil habitantes, é o país mais rico do mundo.

No entanto, desmantelar este sistema teria consequências devastadoras para o país: 36% da sua economia diz respeito ao sistema financeiro e muito dele depende do secretismo e facilitismo do sistema fiscal.

Este sistema trouxe consigo uma grande evolução no nível de vida do país. Segundo o FMI, o Luxemburgo, com os seus 550 mil habitantes, é o país mais rico do mundo se nos basearmos no PIB per capita.

Dilema para Juncker?

Jean-Claude Juncker, presidente-eleito da Comissão Europeia, foi primeiro-ministro do Luxemburgo desde 1995 até ao ano passado, e sempre um grande defensor do sistema fiscal do seu país. “Nunca alguém me conseguiu apresentar um caso convincente e minucioso de que o Luxemburgo é um paraíso fiscal”, disse recentemente o futuro líder da CE.

Juncker garante que o Luxemburgo sempre se guiou e seguiu as leis internacionais. A partir do próximo mês, estará à frente de uma Comissão Europeia que tem demonstrado que é da opinião contrária.

Estabilidade fiscal ou cumplicidade com as grandes empresas?

“Existe uma verdadeira estabilidade. (…) A lei é muito clara. E se não é, existe uma linha aberta com os ministérios”, explicou ao WSJ Phillipe Neefs, um dos sócios da consultora KPMG no Luxemburgo.

Mas esta relação de proximidade tem provocado suspeitas nos países vizinhos. Um dos principais problemas está na forma como são tomadas as decisões. As empresas apresentam uma proposta para a criação de uma holding à autoridade fiscal antes de a colocar em prática, para descobrir a dimensão da fatura fiscal e como esta seria calculada. Isto permite-lhes fazer ajustamentos à estrutura antes de ser criada, uma vez aprovada é vinculativa durante cinco anos e todo o processo é confidencial.

“Reuniamos-nos uma vez por mês, e se a estrutura tivesse ok, podíamos basicamente fazer o negócio imediatamente”.

“As decisões fiscais existem para criar certeza, que é um ponto chave para as empresas”, diz a Journal Alain Steichen, fiscalista que trabalha também como consultor do Governo.

E foi isso mesmo que Marius Kohl deu às empresas e ao sistema fiscal durante 22 anos. Tanto que, escreve o WSJ, as empresas podiam receber uma indicação de aprovação com um simples abanar da cabeça pelo responsável antes de a sua aplicação começar a ser analisada. Uma decisão num processo destes costuma ser um processo longo. No Luxemburgo, muitas vezes, só era necessária uma reunião.

“Reuniamos-nos uma vez por mês, e se a estrutura tivesse ok, podíamos basicamente fazer o negócio imediatamente”, explicou o chefe do departamento de fiscal da subsidiária da Ernst & Young no Luxemburgo, Marc Schmitz. Para além disso, Marius Kohl tinha uma reputação que muito agradava as empresas “nunca mudava de ideias”, explicou um consultor.

Ao WSJ, Marius Kohl explicou também que nunca teve qualquer tipo de pressão dos seus superiores ou de Jean-Claude Juncker.

Comissão suspeita que esses preços servem apenas para reduzir a fatura com impostos noutros países e a OCDE desenhou uma regra para testar se assim era.

Um dos principais pontos de discórdia com os investigadores da Comissão Europeia, no que diz respeito aos negócios com a Fiat e a Amazon dizem respeito aos preços que as filiais dessas multinacionais no Luxemburgo cobravam às restantes subsidiárias localizadas noutros países pelos seus serviços e pelo uso de propriedade intelectual.

A Comissão suspeita que esses preços servem apenas para reduzir a fatura com impostos noutros países e a OCDE desenhou uma regra para testar se assim era, mas o Luxemburgo nunca passou a regra para a lei nem exigiu às empresas documentação de suporte para esses cálculos.

Questionado sobre a forma que usava para determinar se a informação sobre os preços que as empresas davam ao fisco luxemburguês estava correta, Marius Kohl lambeu o polegar, estendeu o braço no ar e respondeu: “não há maneira de o verificar”.