Não há paciência. Nem ele a tinha. A teimosia alheia surgia sempre à mesma – e tardia – hora. Parecia regra. Cada vez que Hans Linné, um jornalista sueco, pegava no telefone para ligar ao número de Klas Ingesson, fazia-o à 1h30. Em plena madrugada. “Telefonava sempre à mesma hora e eu costumava gritar-lhe”, confessou o grande e sueco médio, recordando os tempos de jogador. Depois, em 2001, quando se deixou de correr e dar pontapés na bola, tudo mudou. “No primeiro ano dava por mim na cama, deitado, a pensar: ‘Era bom se o Linné telefonasse.”

A saudade apertava. Ingesson, que em tempos idos, em 1994, galgara a ala esquerda dos relvados com a seleção sueca (somaria, ao todo, 57 internacionalizações) até ao terceiro lugar do Mundial, só pensava em futebol. Com as botas penduradas, ainda se tentou dedicar a tomar conta da quinta de 815 hectares que tinha na Suécia. Mas não dava. Até a mulher lhe dizia — volta para o futebol. Afinal, é difícil parar quem, durante 15 anos, andara a passear os 1,90 metros e 90 quilos de peso por relvados.

E Ingesson, aí, não parou. Mas chegou a abrandar. Aconteceu em dezembro de 2008, no interior de um consultório médico, quando lhe disseram que fora diagnosticado com mieloma múltiplo, um tipo de cancro quee afeta a medúla óssea. “Ficou tudo negro. Só pensava nas pessoas da família que tiveram cancro. Mas depois do choque desaparecer, decidi viver, lutar e retirar o máximo proveito da situação”, chegou a lembrar Klas ao site cancerinformation.nu.

Conseguiu-o até esta quarta-feira. Só agora, após mais de cinco anos, o cancro conseguiu derrubar o sueco que nunca foi capaz de separar do futebol. “Era uma pessoa fantástica, um gigante que soube sempre reagir”, recordou Abel Xavier ao Observador, também ele um antigo jogador, que coincidiu com o sueco no Bari, em Itália, na época 1996/97. O português lembra-se bem dos tempos em que ele, Ingesson e Kennet Andersson (outro sueco), aterraram na cidade do Sul italiano. “Erámos ‘os’ estrangeiros, todos novos, numa aventura”, começou por recordar, recuando aos tempos em que, por Itália, ainda só era permitido a cada equipa ter três futebolistas nascidos além-fronteiras.

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Por isso, o gigante português (1,89m) passou muito tempo com o equivalente sueco (1,90m). “As nossas famílias cruzavam-se bastante. Na fase inicial, de adaptação, até vivíamos juntos no hotel, quando o Bari ainda estava à procura de casa para nós. Eu falava inglês, ele também, e isso foi uma das coisas que nos levou a ter laços mais ternos de amizade e partilha”, revelou o ex-internacional português, ao reavivar as memórias da única temporada que passou em Bari, com Ingesson.

Separaram-se. Cada um seguiu o seu caminho. O do sueco levou-o a passar ainda pelo Bolonha, Marselha e Lecce, quando antes já estivera no IFK Gotemburgo (onde começou), Mechelen, PSV e Sheffield Wednesday. Depois veio a parte de treinar. “O facto de ter sido sempre um líder e um patrão deu-lhe condições para poder continuar a estar no balneário e entre os jogadores. Mesmo com estas limitações”, argumentou Abel Xavier. Limitações? Sim, várias.

Em dezembro de 2010, já com o cancro a roubar-lhe músculo ao corpo e a tornar débeis os ossos outrora fortes, Klas Ingesson recebeu um convite — o Elfsborg queria vê-lo a treinar. O sueco aceitou e lá foi ele dar ordens à equipa sub-21 do clube. Durou pouco tempo, mas por boas razões: a setembro do ano seguinte, a direção do clube pediu-lhe para treinar a equipa principal. Klas não hesitou, mesmo com vários transplantes de células estaminais já feitos. Aí já tinha a companhia de muletas, que o ajudavam a manter-se em pé e a caminhar.

A doença não o prendeu. Nunca. “Disse aos jogadores: ‘Tenho esta merda, as coisas são assim. Neste momento doem-me os joelhos e estou numa cadeira. Mas a vida é isto mesmo. Não quero a vossa simpatia, quero que me digam as coisas na cara.”, revelou, citado pelo The Guardian, ao falar da relação que tinha com os jogadores do Elfsborg. Aí sim, o corpo, enfraquecido por ossos fáceis de quebrar, já o prendiam a uma cadeira de rodas. O que se passou depois, a partir de 2011, foi “inédito” para Abel Xavier. “O clube, o presidente e os adeptos fizeram de tudo para o motivarem a lutar”, congratulou o português, sublinhado que é aqui, nestes gestos, que “a indústria do futebol tem muita coisa boa”.

Klas Ingesson não parou de lutar. Até o fez em Portugal, em Vila do Conde, onde foi parar com o Elfsborg, a 28 de agosto último, e viu um tardio golo de Esmael (aos 92’) empurrar a sua equipa para fora da Liga Europa. “Tenho a certeza que muitas crianças sonham e amam o futebol porque, simplesmente, encontram em Klas Ingesson o exemplo perfeito”, defendeu Pedro Martins, treinador dos vila-condenses, no site oficial do clube, ao recordar o homem a quem apertou a mão no relvado, no play-off da competição.

Já esta época, ‘Klabbe’, alcunha que lhe puseram na Suécia, como se não bastasse, teve mais um azar. Ao intervalo de um encontro do campeonato do país, e quando se encaminhava, sozinho, para o balneário, a cadeira de rodas de Ingesson encravou — ficou presa num cabo e Klas, sem forças para se agarrar ou amparar a queda, caiu no relvado. O estádio calou-se — Ingesson partiu cinco ossos com o aparato e, minutos depois, já estava num hospital. Mais frágil que nunca.

Isso, contudo, não o quebrou. Só o abrandou. Voltaria a orientar a equipa no banco, no estádio, até que esta quarta-feira o cancro o derrubou de vez. “Foi a única batalha que não conseguiu vencer”, lamentou Abel Xavier, ao telefone, quando entristeceu a voz. O resto do futebol, hoje, também ficou triste.