Das bactérias que convivem com o homem, umas provocam doenças, outras ajudam a proteger o organismo de ataques externos. O que a equipa de Miguel Soares, investigador no Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC), em Oeiras, confirmou é que um dos tipos de bactérias que pode viver no intestino tem a capacidade de estimular o sistema imunitário contra o parasita que provoca a malária. Os resultados da investigação foram publicados esta quinta-feira na revista científica Cell.
Cada vez que o sistema imunitário é exposto a um agente estranho cria células específicas para o combater – que produzem um anticorpo específico para cada elemento estranho – e depois guarda em memória como reagir contra esse agente patogénico (responsável por causar a doença). “5% dos anticorpos que existem no nosso organismo são contra o açúcar alfa-gal”, diz ao Observador Miguel Soares sobre os anticorpos que também são responsáveis por rejeitar transplantes de órgãos de porco em humanos em poucos minutos. “São anticorpos muito potentes.”
Um dos organismos que pode induzir o sistema imunitário a produzir anticorpos anti-alfa-gal é uma estirpe da bactéria Escherichia coli que produz o açúcar alfa-gal. Nem todas as estirpes de E. coli (uma bactéria comum no intestino) produzem este açúcar, mas o investigador nota que podem existir outros micro-organismos a produzi-lo, mesmo que ainda não se saibam quais. O que se sabe é que os anticorpos anti-alfa-gal atacam o parasita Plasmodium responsável pela doença malária.
“A malária foi uma das pressões seletivas mais fortes na evolução do homem”, diz ao Observador Miguel Soares, lembrando que o homem surgiu numa região endémica da doença e que provavelmente convive com ela desde sempre. Durante a evolução dos grandes primatas – orangotangos, gorilas, chimpanzés e homens – ocorreram três mutações que fizeram com que as células do organismo deixassem de produzir o açúcar alfa-gal. Assim os anticorpos anti-alfa-gal atacam apenas agentes estranhos, como Plasmodium, Trypanosoma ou Leishmania, sem atacar as células do próprio organismo.
“Estamos todos protegidos [contra o Plasmodium]”, lembra o investigador, desde que as picadas do mosquito que transporta o parasita sejam poucas. Mas as pessoas que vivem nas regiões endémicas da doença são picadas dezenas de vezes durante a noite. Mesmo assim, apenas uma fração dos adultos picados ficam infetados, o que “sustenta a teoria que os adultos podem ter um mecanismo natural de defesa contra a transmissão da malária”, refere o comunicado de imprensa do IGC. Já para as crianças o caso é diferente, estão muito mais suscetíveis à infeção.
Em 2012, morreram cerca de 460 mil crianças africanas com menos de cinco anos devido à malária, segundo dados da Organização Mundial de Saúde citados no comunicado. As crianças apresentam níveis baixos de anti-alfa-gal – ou por terem um sistema imunitário imaturo ou por não conseguirem produzir estes anticorpos – o que as torna menos protegidas contra a doença. Uma vacina baseada numa molécula sintética de alfa-gal, que levasse o sistema imunitário das crianças a produzir anticorpos anti-alfa-gal, poderia protegê-las contra a doença. Mas, por enquanto, esta vacina ainda só foi testada em ratos de laboratório.
Os ratos usados são criados num ambiente totalmente assético, nascem sem nenhuma bactéria. O processo, bastante dispendioso segundo o investigador responsável, permite que cada animal só receba a bactérias que se pretendem estudar. Neste caso, um grupo recebeu bactérias que não produzem alfa-gal e outro grupo recebeu as bactérias que produzem. Só o segundo grupo produziu anticorpos anti-alfa-gal. Um terceiro grupo de ratos, sem nenhuma bactéria, foi vacinado com molécula sintética de alfa-gal e produziu ainda mais anticorpos que o segundo grupo.
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As moléculas na superfície das bactérias levam o sistema imunitário a produzir anticorpos. Os anticorpos anti-alfa-gal são eficazes no combate aos esporozoítos do Plasmodium. As crianças não têm estes anticorpos em quantidade suficiente, podendo a vacinação ser uma solução.
Os investigadores verificaram que os anticorpos anti-alfa-gal atacavam o Plasmodium ainda na derme (uma camada da pele). Para funcionar, a resposta do sistema imunitário tem de atacar o parasita – na forma esporozoíto (como um esporo resistente) – antes que este chegue à corrente sanguínea, porque assim que entra dentro de um vaso sanguíneo pode esconder-se em poucos minutos nas células do fígado. O parasita é atacado na derme porque é lá que o mosquito o deixa, explica Miguel Soares. A fêmea do mosquito vai picando até encontrar um vaso sanguíneo, porque o objetivo é alimentar-se de sangue. Mas enquanto vai “provando” vai “salivando”, e há medida que vai libertando saliva na derme também larga os parasitas transportados por ela. Quando chega ao vaso sanguíneo a pressão do sangue a entrar no mosquito é tão grande que já nenhum parasita é libertado.
A esta equipa não cabe a função de produzir e testar a vacina em humanos, mas Miguel Soares espera que outros investigadores aproveitem estes resultados e possam fazê-lo. Por agora, no IGC, os cientistas vão tentar perceber que outras bactérias produzem o açúcar alfa-gal e se os anticorpos anti-alfa-gal atacam outros vetores de doença além do Plasmodium. Esta equipa pretende também descobrir que quantidade de anticorpos é induzida pela presença das bactérias com alfa-gal. Mas Miguel Soares lembra que se abusarmos dos antibióticos podemos estar a matar esta ou outras bactérias que nos conferem proteção natural contra certas doenças.